Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As histórias que nos colocam na mesma página

O pensamento do nosso tempo sofre constantes ameaças e convive diretamente com inimigos íntimos. Para o biólogo e poeta moçambicano, Mia Couto, a “amputação da diversidade dos seres” é uma das maiores agressões possíveis neste cenário. Às vésperas de completar 60 anos e tendo conquistado homenagens como o Prémio Camões (2013) e Neustadt International Prize for Literature (2014), Couto questiona a ambição de codificar e compreender os fenômenos em sua totalidade e alerta para a possível redução da complexidade da vida e dos fenômenos. Sob o acirramento de conflitos de existência e frente ao desafio de criar pontes para a diversidade, o encantamento ao escutar histórias e reconstruí-las nas relações é o caminho apontado por Couto para vencer as fronteiras ideológicas que bloqueiam nossas circulações.

Publicado em mais de 22 países, o moçambicano, que se define “um polígamo de profissões”, nutre pelo Brasil uma constelação de sentimentos ligados à música, às vozes, à literatura e aos reencontros. Sem se levar demasiado a sério e observando o mundo sob um pseudônimo que revela sua admiração pelos felinos, Mia Couto soma mais de 30 livros publicados – no Brasil, a Companhia das Letras se prepara para lançar o seu 23º título – e a experiência de quem contempla a natureza e a vida em trabalhos de campo em Moçambique. Circulando por diversas regiões onde muitas vezes não há energia ou ligação telefônica, mantém-se, ainda assim, disponível. Sereno e suave, o filho de poeta nascido em Beira encontra na biologia o fascínio pela narrativa suprema da vida e, na literatura, celebra-a. Nesta conversa, fascínio e celebração carregam as mansas palavras desestabilizadoras de Couto.

Distintas ciências humanas estudam a importância da ficção para a cooperação humana, desde a revolução cognitiva aos dias atuais. Como o senhor entende a relação entre nossa capacidade de inventar realidades e nossa capacidade de colaborar em grandes grupos?

Mia Couto – As nossas “realidades” são quase sempre inventadas. Não damos conta desse processo de construção ficcional porque fazemos fé de que essa consciência do mundo e dos outros se fundamenta em um conhecimento chamado de “objetivo”. A ideia que fazemos dos outros é uma espécie de moldura pré-fabricada, que nasce de um invisível processo de fabricação. Acabamos dispensando a descoberta do outro pela facilidade do estereótipo. Acreditamos estarmo-nos relacionando com outras pessoas, mas não somos capazes de sair desse formato, dessa visão já viciada.

Já a ficção tem uma vantagem: não se quer fazer passar por uma “verdade”. O escritor diz aos outros: vejam pelos meus olhos, mas não acreditem. Construam o vosso próprio olhar. A função da literatura não é a de explicar nem encontrar a verdade. Lermos os mesmos livros e escutarmos as mesmas histórias nos aproxima, porque nos afasta desse formato e dessa encenação inicial.

Como a comunicação, em suas diversas formas, potencializa o papel dos indivíduos como pontes ligando diversas margens?

M.C. – Não sei quanto ainda comunicamos. Trocamos, com instantaneidade, recados. Somos inundados por uma sobredose de informações, nos tornamos receptores permanentes de mensagens. Mas na maior parte das vezes, essas informações são apenas ruídos, um simulacro de companhia. Uma das nossas incapacidades é a de habitarmos o silêncio. Temos medo desses momentos, como se o silêncio fosse uma ausência, um vazio. Temos, afinal, medo das vozes interiores que se revelam nessas condições. Antes de pensar em criar pontes com os outros, esses que aparentemente nos são exteriores, necessitamos de criar pontes entre a diversidade interior que nos compõe.

Inicialmente promissora, a ideia de segmentação na comunicação tem mostrado uma perigosa face oculta: a segregação. Como nos tornamos “mulatos de existências” neste mundo?

M.C. – Eu passei por uma experiência que me parece interessante trazer aqui como resposta a esta pergunta. No processo da escrita eu tenho, obviamente, que criar personagens femininos. Como fazer isso, eu que faço parte de uma geração educada num padrão bem redutor na definição do que é um “homem”? Como fazer isso sem me libertar dos estereótipos mais rigorosos da masculinidade? A primeira solução que ensaiei foi conversar com amigas, para tentar mergulhar naquilo que fosse a intimidade do universo feminino. Depois, percebi que esse caminho, ainda que frutuoso, não me dava as principais respostas. Porque, afinal, esse universo ainda residia dentro de mim. Toda a minha infância e adolescência tinham sido um longo processo de construção de barreiras que pouco têm a ver com a chamada “orientação” sexual. Afinal, o que está em causa é o modo como estamos acima dessa falsa dualidade “masculino” versus “feminino”.

Temos um acesso à informação sem precedentes. Mas, hoje, estamos mais ou menos habilitados a entender o mundo ao nosso redor?

M.C. – O equívoco é pensar que a organização do mundo está feita como um alfabeto. Que os códigos genéticos, por exemplo, estariam ordenados como um livro. Sabendo “ler” esse livro, conheceríamos os segredos da saúde e da longevidade. Estamos tentando simplificar, projetando o nosso modo de estruturar o conhecimento. Mas a Vida e o Universo são bem mais complexos. Existem alfabetos, códigos, mas eles são vários, simultâneos, contraditórios e escapam à nossa possibilidade de conhecimento total. Nós entendemos os fenômenos à dimensão humana e à nossa escala do Tempo. Há aqui, pois, algo que deve ser dito: nós nunca seremos capazes de um entendimento total de tudo. Haverá, felizmente, uma margem de mistério que vai sobrar. Temos que enfrentar essa fragilidade sem que isso surja como uma derrota, uma menoridade. De tal modo nos confortaram com esse falso poder de domínio, que ficamos perdidos com a margem de ignorância e imprevisibilidade. Há um longo caminho para aprendermos a ser felizes e serenos, mesmo sabendo o quanto é enorme a nossa ignorância sobre o mundo e sobre os outros.

Como as pessoas podem, em seus ofícios diários, “reacordarem-se” para o que gira ao redor?

M.C. – Não tenho receita. No meu caso, multiplico-me por afazeres diferentes. Do ponto de vista das profissões, sou um polígamo. A ideia é não ser apenas aquilo que é o nosso ofício. Aprendemos a nos apresentarmos aos outros nesse modo simplificador: “Olá, sou escritor”. E o outro acredita que sabe algo de nós porque ficamos arrumados na gaveta dessa identidade: a dos escritores. Prefiro, no meu caso, usar o verbo “estar”. Num certo momento, estou escritor.

Mas existe uma outra estratégia que me tem ajudado: é não me levar demasiado a sério. Aquilo em que vou trabalhando não é apenas um ofício, é uma paixão que me ajuda a ser quem sou e a deixar de ser quem já fui. Publiquei mais de 30 livros e sou ainda um estreante. Se não estiver tudo ainda no princípio, não me dá vontade de continuar por esse caminho.

Em que espaços se preserva o encantamento do mundo hoje?

M.C. – Eu não sei se há uma resposta geral. Possivelmente, mantemos todos a mesma paixão original de escutar histórias. Se entendermos que uma pessoa é construída de histórias, a relação com essa pessoa passa a ser um motivo de encantamento, porque essas histórias não são simplesmente reveladas. São construídas e reconstruídas na relação.

E em quais é crucial desenvolver o reencantamento?

M.C. – Na descoberta dos infinitos outros que há no nosso vizinho, na nossa família.

Certa vez, o senhor disse que “o importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora”. Em que lugar mora no senhor uma casa chamada Brasil?

M.C. – O Brasil não é exatamente um lugar. É uma assembleia de vozes, memórias e reencontros. Essa constelação de sentimentos nasceu ainda na minha infância, quando sentado na varanda da minha casa, escutei pela primeira vez as canções de Dorival Caymmi. Em África, numa outra nação, na margem de um outro Oceano, eu descobri algo que parecia já existir dentro de mim. Esse sotaque rouco e adocicado era muito mais do que um outro modo de falar português. Fiquei com a memória desse embalo e regresso a esse momento sempre que volto ao Brasil.

Quais os riscos de se tentar barrar a diversidade à porta de entrada?

M.C. – São vários. Um deles é o de reduzirmos a possibilidade de sermos felizes. Eu creio que uma das razões de encantamento é podermos visitar as muitas nações que compõem a nossa alma. Não o fazemos por causa de barreiras que são erguidas através do medo. Regressando ao exemplo da minha travessia interior até encontrar o meu lado feminino, eu tive que derrubar preconceitos que estreitavam o meu pensamento e atrofiavam a minha sensibilidade. Essas linhas de fronteira tinham sido construídas por via do medo. O medo de não ser “homem”, o medo de não ser aceito pela “tribo”, o medo de ser marginalizado. Outro risco é ficarmos à mercê de uma certa manipulação, que encontra uma enorme facilidade para construir modelos de identidade: os brasileiros são “assim”, as mulheres pensam “assim”, os muçulmanos sentem “assim”. Nós vivemos hoje uma séria ameaça, que é a padronização de comportamentos e da imposição de uma ideia de normalidade. As escolas apetrecharam-se de apoio de psicólogos, o que em si mesmo pode ser um contributo positivo. Mas essa gente está, muitas vezes, animada pelo acerto da chamada normalidade. Os meninos vivem, nessa altura, uma intensa busca de si mesmos num mundo em mudança e numa errância criativa que só pode ser saudada. É preciso que não haja policiamento desta diversidade e desta pujança. A escola deve ser socializadora, mas deve suscitar a inquietação e a vontade de ser único e diverso.

Quais os esquecimentos perigosos e os necessários para a diversidade?

M.C. – Creio que a redução da complexidade dos fenômenos e a amputação da diversidade dos seres são as maiores agressões ao pensamento do nosso tempo.

Das fronteiras que enfrentamos na vida, quais são mais perigosas à nossa habilidade de interagir socialmente?

M.C. – Eu creio que são as fronteiras do pensamento. Por estranhamente, são as que são menos pensadas. Numa comunicação que fiz há uns anos em Porto Alegre/RS, (exatamente num ciclo de eventos chamado Fronteiras do Pensamento), falei sobre este assunto. Na verdade, a Vida é perita em construir fronteiras, desde os componentes intracelulares, passando pelo núcleo das células à epiderme dos organismos. Mas essas são fronteiras vivas, osmóticas, maleáveis. As fronteiras que construímos ideológica, ética e socialmente são fronteiras duras, feitas para impedir definitivamente certo tipo de circulação. Como é óbvio, essas muralhas acabam por ser frágeis, sujeitas às dinâmicas de mudança das sociedades e dos indivíduos. Um exemplo: nós olhamos o passado arrumado em blocos: a Pré-História, a Idade do Bronze, a Idade Média e por aí afora. E fazemos fé nessas divisórias. Mas muito do que somos hoje resulta da sobrevivência da Pré-História dentro de nós. Muitos dos nossos medos e comportamentos são ainda os do caçador-coletor que fomos durante centenas de milhares de anos. Muito daquilo que acreditamos ser medieval – como a escravatura, as pragas, a pirataria – subsiste hoje com um formato diferente, mas com uma dimensão tão ou mais grave do que aquelas que caracterizaram um “outro” tempo.

A ciência é, sem dúvida, uma fonte de contribuição para o saber e o conhecimento. Foi a ciência que nos ajudou a derrubar preconceitos e obscurantismos. Uma parte de mim se dedica à ciência, e ocupo-me, com muito prazer, em ser biólogo. Mas é preciso que a visão científica não se torne de tal modo hegemônica, que qualquer outra abordagem seja aniquilada à partida. Essa visão totalitária da narrativa científica acabou por desencantar a natureza. Há uma certa ideia de “sagrado” que deveríamos saber conservar. O sentido que preside à palavra “religião” deve ser mantido mesmo nos ateus: a necessidade de nos religarmos a algo que nos confere um sentimento de pertencer e de partilha.

Quais as fontes do reencantamento do senhor com o mundo?

M.C. – Aquilo que chamamos de “beleza” é o encontro com os pequenos momentos em que se revelam o infinito e a eternidade. Tenho quase medo de pronunciar esses nomes, tal o modo como eles foram apropriados pelo discurso religioso. Esses momentos, esses sentimentos dependem não tanto daquilo que está à nossa frente, mas do que está dentro de nós. Acho que existe apenas um segredo: o estar-se disponível. Essa abertura não acontece espontaneamente. Há que derrubar as nossas defesas mais recônditas. Posso me deixar encantar por uma paisagem, uma obra de arte, uma conversa, uma pessoa, desde que haja beleza e sedução nesse encontro. Mas é preciso que essa beleza tome posse de nós. Não basta gostar de uma canção, de um trecho de uma sinfonia. É preciso estar disponível para que a música tome posse de nós, nos roube do tempo e do mundo. É preciso que essa canção ocupe a última reserva de silêncio da nossa alma. O reencantamento depende do quanto queremos ser encantados.

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Nara Almeida é editora da revista Comunicação Empresarial