Pela manhã, via meu avô paterno colocar os óculos de lentes bifocais para, solene, ler o jornal vindo da capital paulista. Por volta do meio-dia, a caminho do Colégio Marista, uma moeda transformava-se num copo d’água, brotada de mina sombreada por bambuzais no quintal do senhor Chafic Frahya. Enquanto esperava pelos estudantes, o senhor Chafic relia, circunspecto, jornais em francês da década de 20, com folhas em tom rosa pálido. Acaso os jornais seriam leituras para idosos serenos e comporia parte da apatia dos bons idosos?
Por volta de 1966, meu tio Benedito Ramos, que voltara de um curso na Universidade Patrice Lumumba, ficou de quarentena em minha casa. Lia o Jornal do Brasil e dizia ser o único confiável. Seis meses depois, voltou para a atuação política em Goiás, próximo dos Ludovico.
Comecei a ler jornal aos quatorze anos. Para quem vivia no Sul de Minas, em Poços de Caldas, cidade cosmopolita pelo turismo e barroca pela mentalidade, o jornal e o rádio eram as janelas para o mundo. Indissociáveis como pares complementares a dar conta das novidades do mundo e, em particular, da ditadura militar em curso. A par de crônicas memoráveis, os cadernos de cultura e de esportes, a notícia mais esperada era a do resultado do exame vestibular.
Consciência e autoconsciência
Mais tarde, estudante em São Paulo, o hábito transformou-se em segunda natureza. Desde aquele tempo, leio jornais pela manhã, tomando café. O perseguir de notícias, de temas, de investigações, e as marcas de tinta fresca nos dedos, são imprescindíveis ao despertar. Houve dias que esperei pelo jornal na portaria do prédio. Tempos depois, passei dois anos agradabilíssimos lendo jornais de começo do século 20, no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, como parte de uma pesquisa acadêmica. Um horizonte completamente novo abriu-se. E, muitas vezes, esquecia o objeto da pesquisa e passava dias inteiros a acompanhar uma determinada notícia sobre anticlericalismo, sumiço de determinada pessoa ou crises da política republicana em sua primeira fase. No mesmo Arquivo, li jornais dos militantes libertários brasileiros microfilmados de um arquivo holandês, de Amsterdã, pois os originais foram destruídos pela polícia paulistana.
Mas nem só da grande imprensa sobrevive um leitor de jornais. Entrados os anos oitenta, surgiu o Jornal dos Jornais, da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo. Consistia numa montagem sintética de recortes do noticiário e das análises jornalísticas da semana veiculadas pela grande imprensa, mas não somente desta, destinado ao trabalhador. A par disto, o professor Maurício Tragtenberg, da PUC-SP, assinava a coluna semanal ‘No Batente’, do extinto Notícias Populares. Na coluna, respondia cartas, esclarecia os trabalhadores sobre os rumos do sindicalismo e das reivindicações operárias, combatia o fascismo ordinário, o racismo e as novas formas de controle social.
Para facilitar a aquisição de romances pelos trabalhadores, surgiu, nos anos oitenta, uma outra modalidade de jornal, o Jornalivro, que publicava literatura em forma de jornal, organizados pela ACO-Vergueiro, dos dominicanos, como o romance Fontanamara. É sabido que grande parte dos militantes operários tomaram consciência dos problemas sociais e autoconsciência de sua situação via literatura. Entre 1975 e 1977, a Folha de S.Paulo publicou a coluna ‘Jornal dos Jornais’, que foi a manifestação seminal do media criticism no Brasil, projetada por Alberto Dines.
Negação da ordem social
Os nexos entre jornalismo e literatura compõem um verdadeiro achado, sobremaneira quando artigos jornalísticos viram livros. Gabriel García Márquez, como jornalista, transformou uma série de reportagens no notável Relato de un Naufrago. João Guimarães Rosa, em Ave Palavra, perpetuou pequenos artigos publicados originalmente no Correio da Manhã, em O Globo, no Estado de S.Paulo e outros menores. E o poçoscaldense Jurandir Ferreira transformou suas crônicas de anos e anos, publicadas em jornais locais, no maravilhoso Da Quieta Substância dos Dias. Sem perder de vista o jornalista Lucien de Rubempré, personagem complexo das Illusions Perdues, de Balzac.
O desmonte crítico da prática jornalística tem sido objeto de intelectuais. Recentemente, Francisco Fonseca publicou O Consenso Forjado, análise crítica das mazelas de grandes jornais em torno dos deslizes do governo FHC. E, ainda sem publicação, a dissertação de mestrado de Luiz Egypto, ‘Imprensa e Indústria da Consciência: a informação e a contra-informação militante’, de 1982, cuida crítica e politicamente do universo de informações destinadas aos operários paulistas.
A continuar valendo a assertiva ‘a leitura de jornais é a oração matinal do cidadão’, ou o que o valha, falta hoje um jornalismo mais investigativo e analítico – e menos informativo pela metade, à sombra do poder. Faz-se necessária a volta do jornalista independente e pluralista, a pensar maiúsculo. Já esgotou a fórmula esquizóide de escrever para os iguais, para os pares, para os corporativismos, seja lá que corporativismos forem.
Se for fato que está em curso o declínio do jornalismo impresso, não está em curso o fim da missão do jornalista de expressar-se com independência e acuidade acerca do que investiga e do que pensa. E na ausência de instituições políticas, que explicitem os conflitos sociais, a grande imprensa e a pequena imprensa devem assumir este papel, imparcialmente, com vistas a um horizonte de negação da ordem social dada.
Assim será possível ler um jornal em muito mais que os vinte minutos diários, inclusive as edições de domingo.
******
Professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP e do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP-FGV