O sociólogo inglês John B. Thompson, autor de A Mídia e A Modernidade, define a ‘visibilidade’ como um aspecto político fundamental dos nossos tempos. Não mais vivemos em uma era de exclusivas interações face a face. Portanto, é por meio da mídia e suas mediações que acessamos e tomamos conhecimento das informações de interesse público (ele vai além, ao defender, inclusive, que é por meio dos veículos de comunicação que intervimos socialmente).
A era da visibilidade política é também a era dos escândalos, que são fabricados de várias formas. A principal delas é faltar com a verdade e ser pego em flagrante. Recupero a obra de Thompson porque creio que essa sua tese sobre a visibilidade nos serve centralmente para explicar o que vem ocorrendo com a ministra da Cultura, Ana de Hollanda. A sua primeira grande ação como ministra – antes mesmo de nomear sua equipe – foi remover da página do Ministério da Cultura o selo Creative Commons, que disciplinava o acesso aos conteúdos públicos distribuídos por meio da plataforma. O tema segue rendendo acalorados debates, como demonstrou a sabatina a que foi submetida no Senado esta semana.
Reformulado em 2007, sob liderança de José Murilo Jr., que segue no Ministério como gerente de Cultura Digital da Secretaria de Políticas Culturais, o site ministerial tornou-se mundialmente conhecido devido à sua originalidade e atualidade. Desenvolvido pioneiramente e utilizando o software de gestão de conteúdos WordPress, o site procurava iniciar o Estado na era das conversas horizontais e livres da internet, o que só seria possível se, além dos códigos de programação, os conteúdos também fossem livres. Isso, no entanto, não era problema porque já há alguns anos o Ministério adotara uma licença de compartilhamento, Creative Commons. A gestão Gil-Juca optou por essa licença específica por ser uma iniciativa eficiente, de caráter internacional e também devido à facilidade jurídica de sua utilização.
As licenças em evolução
A ministra Ana de Hollanda voltou a questionar essa adoção dizendo que para isso os gestores teriam de realizar uma licitação (uma concorrência pública). Trata-se de alegação estapafúrdia e falsa. Isso porque uma licença Creative Commons nada mais é do que um documento, baseado na lei brasileira de direitos autorais, que permite ao produtor de informações estabelecer um claro pacto com o usuário. Isso porque a lei brasileira dá essa prerrogativa ao autor (só faltava não dar, não é?), mas não diz como. Portanto, o que o Creative Commons faz é ‘regular’, ‘detalhar’, os termos da cessão voluntária de direitos. Apenas isso. Por que haveria, então, de haver licitação para algo que é de uso público e gratuito?
Confrontada com o fato de que o Palácio do Planalto utiliza a licença CC em seu blog, Ana de Hollanda saiu pela tangente por meio de uma distinção entre sites e blogs. A questão é que, do ponto de vista técnico, por utilizar como gerenciador de conteúdo o WordPress (aliás, a mesma ferramenta do blog do Planalto), o site do Ministério da Cultura também é um blog. Essa distinção não é, por princípio, razoável, mas a faço apenas para demonstrar que os argumentos da ministra não param de pé. Ainda que fosse por isso, ela está errada.
Ana de Hollanda também mistura alhos com bugalhos porque Creative Commons é não só a licença, mas também o nome da entidade que administra esse projeto sem fins lucrativos. Essa administração é fundamental porque as licenças seguem em evolução, melhorando para dar conta das velozes transformações pelas quais passa a nossa sociedade.
Escolha da ministra não foi técnica
Outro argumento por Ana de Hollanda utilizado nos lembra que existem outras licenças. É fato. Quais, ministra? Faça uma lista de alternativas e publique no site do Ministério. Na realidade, são poucas as alternativas consistentes e, acima de tudo, nenhuma que seja reflexo da inteligência coletiva da era das redes, como é o Creative Commons (a não ser a GPL, utilizada em geral para softwares e que serviu justamente de base para o CC).
Aliás, uma razão sólida para justificar a utilização do CC é sua capacidade adaptativa e evolutiva constante. Como existem muitas pessoas trabalhando, conjunta e voluntariamente, em mais de 70 países, essas licenças estão sempre up to date. Muda a dinâmica social, evolui a licença. Na velocidade da rede. Como se trata de questão transnacional (na rede, os conteúdos não reconhecem fronteiras), a marca CC, antes de uma propaganda, é um ícone facilmente identificável, facilitando assim a apropriação do que é justamente produzido para ser partilhado.
Ao fim e ao cabo, o que ficou evidente é que Ana de Hollanda tenta trazer para o campo técnico – que desconhece – uma decisão política. Seus compromissos prévios com setores que viam na adoção do Creative Commons pelo Ministério da Cultura uma ‘propaganda’ contra os autores orientaram sua decisão. Ninguém que lida com essa questão dentro do Ministério foi ouvido nos primeiros dias de janeiro, antes de a ministra anunciar seu veredicto. Quando ordenou a retirada da licença, nem sequer se deu ao trabalho de construir uma justificativa. Questionada por jornais e revistas, enviou três linhas em que dizia ser uma decisão de foro exclusivo do Ministério e de sua gestora. Após a reação das redes, democrática e incisiva, foi obrigada a construir um argumento – que não cola, porque é falso.
Na era da visibilidade política, em que uma sabatina com senadores é assistida ao vivo pela internet por todos aqueles que se interessam pela vida pública, é preciso saber que as informações serão confrontadas, que a esfera pública delas irá se apropriar para fazer o bom debate – como explica Thompson. A escolha do Ministério da Cultura de Ana de Hollanda não foi técnica. Se fosse, jamais teriam removido a licença. Foi política. E isso, justamente pela sua falta de capacidade de construir uma versão convincente para sua decisão, ficou explícito esta semana.