‘Em tempos de culto às celebridades, prostitutas conseguem até simpatia social ao assumir publicamente o que fazem.’ É com este subtítulo que a matéria ‘De Geni para Tieta’ (O Estado de S. Paulo, 9/10) fala de três jovens brasileiras que ganham a vida se prostituindo. E assumindo publicamente o que fazem.
Segundo o jornal, elas aparecem em programas de televisão, têm destaque na internet e até merecem perfil em revistas. Uma delas, segundo o jornal, ‘já falou para Época, Vip, Sexy e Vogue e seu diário virtual virou tema de reportagem em revistas e cadernos de informática’.
As três meninas bem-sucedidas, a ponto de merecerem matéria de página inteira em edição de domingo (uma excelente maneira de divulgar o trabalho e conseguir novos contatos), sorriem para foto, dão seu recado e deixam de fazer parte do mundo marginal que só merece destaque na mídia quando a polícia faz seu trabalho – as famosas batidas de rua com prisão de menores exploradas sexualmente.
Podemos acusar a imprensa de errar ao fazer esse tipo de matéria? Não, porque se é notícia, tem que ser publicada. O erro é glamourizar esse comportamento que, no dizer de qualquer feminista, prejudica a imagem das mulheres e atrapalha a luta por igualdade. O erro é colocar, até com uma ponta de admiração, o fato de essas moças ganharem até 15 mil reais por mês, por certo bem mais do que o salário da autora da reportagem.
Perda do senso crítico
Nesse mundo ideal retratado pela imprensa, tudo parece cor-de-rosa. Até o namorado de Bruna, um ex-cliente, definido como pessoa de maneiras educadas, discurso articulado, usando terno e gravata – Pedro da Bruna, como já é chamado na web –, conta que ‘se apaixonou por ela assim que a conheceu melhor’. Há dois meses mudou para o flat onde ela mora e recebe os clientes. É esse namorado, que se Bruna fosse prostituta das ruas seria chamado de cafetão, quem diz: ‘Não tenho ciúmes do trabalho dela. Pelo contrário, tenho orgulho de tudo o que ela fez. Bruna virou um marco ao resolver aparecer em público. Querer tirá-la dessa vida agora seria uma prova de preconceito meu’.
É o caso de perguntar: se os jornais evitam noticiar suicídios (porque poderia ser considerado um incentivo a outros potenciais suicidas), o tratamento com a prostituição não deveria ser o mesmo? Ao mostrar o ‘sucesso’ de jovens interioranas que saem de casa e vão para os grandes centros se prostituir, a imprensa não estaria mostrando o caminho para outras jovens que sonham em ganhar muito dinheiro e, mais remotamente, com a celebridade?
‘A sociedade cultua a celebridade independente do que ela faz. Essa garotas acabam reconhecidas não pelo que elas fazem, mas porque estão famosas’, diz a psiquiatra Carmita Abdo ao jornal. O que a psiquiatra não disse é que a mídia tem um papel fundamental nesse culto às celebridades que ela mesma ajuda a criar e divulgar. Na disputa por leitores e espectadores, a mídia perde o senso crítico e vira apenas divulgadora de gente famosa, dando destaque até a atividades que, em outros tempos, seriam motivo de execração pública.
Matéria palatável
Se a desculpa da imprensa para falar da prostituição é registrar um comportamento, deveria, ao menos, aprofundar a discussão, falando mais dos ‘efeitos colaterais’ da atividade. Em momento algum da reportagem é discutido o fato de essas moças fazerem parte dos grupos de alto risco das doenças sexualmente transmissíveis, inclusive a Aids. E nem o jornal, nem a mídia como um todo, gastam páginas, como aconteceu com a matéria sobre as garotas de programa, para discutir a situação das mulheres que trabalham e que têm que se conformar com salários miseráveis, quando comparados aos 15 mil mensais da agora famosa Bruna.
Pesquisa do Sesi, divulgada em 9/10 – e ignorada pela imprensa – revela:
‘Dos 29,5 milhões de trabalhadores com carteira assinada, 40% são mulheres. Entre elas, está o melhor nível de instrução. No universo de analfabetos, as mulheres não chegam a 20% e, entre as pessoas com curso superior completo, são maioria (55,9%). Ainda assim, seus salários são inferiores aos dos homens. Dos trabalhadores com renda superior a dez salários mínimos, apenas 32% são do sexo feminino’.
Pensando bem, que manchete fariam os jornais com informações desse tipo? Diriam que as mulheres ganham menos do que os homens? Como fazer uma matéria palatável ao grande público discutindo assuntos árduos e que só interessam aos estudiosos e às mulheres, vítimas do preconceito? É muito mais fácil mostrar fotos de mocinhas bonitas e sorridentes que conseguiram ‘vencer’ na carreira. Mesmo que seja uma carreira de que poucas mulheres se orgulham.
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Jornalista