A imprensa escrita é certamente o melhor campo para a observação de um pequeno fenômeno que hoje se acelera: o deslizamento semântico de palavras de largo uso público. Algumas delas estão fora do espectro político ou econômico, a exemplo de ‘patinar’. De um tempo para cá, os jornais vêm fazendo crer que a dificuldade num processo qualquer pode ser descrita pela metáfora da patinação – ‘fulano está patinando nessa questão’. Ora, considerando-se a habilidade requerida para essa proeza, patinar é algo exitoso. Ao que parece, o significado de ‘patinhar’ (aí, sim, a dificuldade de se avançar na água ou na lama, que também pode equivaler a chafurdar ou até mesmo remar) acabou deslizando para patinar.
Isso talvez não tenha maior importância. Afinal, o vernáculo, às vezes à margem do formalismo da língua, tem uma dinâmica própria, que pode ocasionar a erosão semântica dos vocábulos. No francês de séculos atrás, gêner queria dizer torturar, mas hoje é apenas ‘incomodar’. Em português, palavras outrora de uso castiço e literário resvalam na modernidade para o regionalismo vulgar e vice-versa.
Em resumo, transformar-se, semântica ou onomasticamente, é próprio da vida dos idiomas, e foi bem isto o que enfatizaram os modernistas de 1922, ao se desviarem das formas habituais de expressão. ‘Os homens de 1922’, dizia Sérgio Milliet, ‘jogaram fora a roupa velha de damasco, apesar dos gritos das famílias escandalizadas, apesar dos anátemas e das excomunhões dos pajés.’
Alarmista e condenatório
Longe de nós, portanto, a intenção de ir de encontro às alterações vernaculares inerentes ao curso natural da ‘fabulosíssima língua brasileira’, de que tanto se orgulhava Mário de Andrade. O que nos interessa aqui é frisar a responsabilidade tradicional do jornalismo para com o idioma e chamar a atenção para os casos em que os significados deslizam maliciosamente, em virtude de inconfessas estratégias editoriais, com vistas a efeitos ideológicos precisos. Veja-se, por exemplo, o verbo ‘dividir’, aplicado ao contexto eleitoral. Para alguns jornais e revistas semanais, os resultados da atual eleição presidencial ‘dividiriam’ o país.
Na realidade, o que está em questão como pano de fundo é, primeiramente, a troca de influências sobre o percentual de votos que, no caso de Lula, foram o crescimento no Norte e Nordeste e a queda no Centro-Oeste e Sul. Em segundo, a questão é uma divisão especificamente eleitoral, como aliás comentou o colunista Merval Pereira:
‘O Sudeste ficou dividido: parte de Minas, Espírito Santo e Rio com Lula, e uma parte de Minas e São Paulo com Alckmin’ (O Globo, 29/10).
Como todo mundo sabe, repartição de votos é conseqüência óbvia e normalíssima do funcionamento democrático das urnas, e não ‘divisão do país’, como sugerem os textos claramente interessados em demonstrar uma fissura sociopolítica entre a região responsável pela arrecadação de 81% dos tributos nacionais e as outras regiões a que se atribui o saldo restante.
Por trás dessa insinuada conotação negativa para a palavra ‘divisão’ (em termos de lógica do discurso, a resultante de uma proposição descritiva particular para uma proposição normativa universal), está implícito o significado alarmista e condenatório das preferências eleitorais de uma maioria de votantes.
Hegemonia das representações
Na esteira semiótica dessa suposta fissura ganham vigor vocabular termos como ‘elite’ e ‘grotão’, em geral descontextualizados. Elite – é impreciso o significado desta palavra, pode-se mesmo chamá-lo de ‘significado flutuante’, mas serve para criar uma dicotomia em que se vislumbra uma luta presumida entre ricos e pobres, uma variação emocional do conceito de luta de classes. Ele tem circulação num indigitado discurso populista, mas a própria imprensa também o emprega com a mesma vagueza, quando assim acha conveniente. Por exemplo, na entrevista com um antropólogo, publicada por O Globo no domingo do segundo turno da eleição, o repórter fórmula assim a pergunta:
‘Essa concepção [a concepção de que a corrupção atual não impressiona mais do que outras] não foi incorporada por uma boa parte da elite e da classe média que declarou voto em Lula?’
Quanto a ‘grotão’, trata-se em princípio de lugares remotos, que se presumem controlados por ‘coronéis’ ou por máquinas partidárias. Mas ao se substancializar de modo quase mitológico o vocábulo, esquece-se de dizer que a realidade descrita por ‘grotão’ aplica-se igualmente aos grandes conglomerados urbanos, trabalhados por influências político-partidárias em nada em nada modernas ou reformistas.
São muitos os exemplos e comportam uma busca pormenorizada. É trabalho a ser empreendido tanto por leitores críticos quanto pela própria imprensa, pois já não é mais nenhuma novidade a reflexão de analistas da cultura contemporânea – o norte-americano Richard Rorty é um deles – sobre a importância das designações na construção de uma realidade qualquer. A hegemonia das representações, campo em que se trava o embate político-partidário, desenvolve-se também por meio da ‘guerra’ de posições terminológicas.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro