O assassinato dos três jovens moradores do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, no sábado 14/6, é mais um exemplo dos enredos surreais que nos agridem diariamente através do noticiário. Inicialmente, eles haviam apenas sumido após uma ‘verificação de rotina’ feita por militares do Exército, seguida do clássico ‘desacato à autoridade’, o que lhes teria rendido uma detenção sem maiores conseqüências. Pouco tempo depois, descobriram-se os cadáveres em um lixão da Baixada Fluminense. Por fim, apurou-se que haviam sido mortos por traficantes de uma favela vizinha, o Morro da Mineira. Devidamente entregues aos seus algozes pelos mesmos militares que os haviam detido, não duraram mais do que algumas horas nas mãos dos criminosos. A partir daí, a história ganhou contornos que falam muito sobre as mazelas do estado e de nossa imprensa [ver remissões abaixo].
Não sem certa dose de razão, alguns setores da mídia preferiram concentrar seus esforços na busca e no questionamento das causas para a presença do Exército naquela localidade carioca. Descobriram o uso eleitoreiro de um projeto social e, por extensão, das Forças Armadas em ano de eleições municipais. Registre-se que o proponente do projeto denominado Cimento Social, o senador Marcelo Crivella, além de candidato a prefeito do Rio, é associado à Igreja Universal do Reino de Deus, proprietária da Rede Record, com interesses cada vez mais conflitantes em relação às Organizações Globo.
Vida tem pouco valor
Por outro lado, a inconstitucionalidade da presença do Exército, exercendo função de polícia naquele local, foi tratada em geral, dentro e fora das redações, com muitos dedos. Não se sabe ao certo se por algum resquício dos temores da ditadura ou se preventivamente, uma vez que muita gente, em particular no Rio de Janeiro, gostaria de ver aquela instituição patrulhando as ruas e, supostamente, coibindo o crime com uma presença ostensiva.
Mesmo com a ampla e até certo ponto surpreendente repercussão que teve este hediondo crime cometido junto a três representantes da significativa fatia de miseráveis brasileiros, ele traz à tona algumas questões timidamente abordadas ou simplesmente ignoradas por nossa mídia.
A primeira é o pouco valor que a vida do jovem negro tem no país. Segundo dados do relatório de Desenvolvimento Humano Brasil – Racismo, Pobreza e Violência (PNUD), de 2005 –, a probabilidade de um jovem negro do sexo masculino, entre 15 e 25 anos, morrer assassinado pela polícia por ‘reagir à voz de prisão’ é três vezes maior do que o índice dessas ocorrências verificado entre jovens brancos com o mesmo perfil.
A profundidade do buraco
Retirando-se as forças policiais dessa equação, os negros continuam liderando este macabro quadro de assassinatos por armas de fogo, como corroboram outras pesquisas divulgadas pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não bater nesta tecla com veemência é compactuar com este sistema de execuções.
O segundo ponto é igualmente alarmante e cabe para ele a ingênua pergunta que faria qualquer menino de 12 anos. Como aqueles militares sabiam exatamente onde, quando e para quem entregar seus desafetos? Para quem acha que se trata de caso isolado, não custa lembrar outro fato. Em 2006, uma pistola e alguns fuzis foram roubados de um quartel carioca. Semanas após uma exibição de força pelas ruas da cidade, digamos inócua, as armas ‘apareceram’ sem que ninguém fosse preso ou identificado como autor do crime.
Para usar uma surrada metáfora, há laranjas podres aí. O que parece não haver mais uma vez é a disposição de se aproveitar mais uma das inúmeras tragédias brasileiras para se apurar o quão profundo é o buraco.
******
Jornalista