Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aspargos em Marte,
promiscuidade na Terra

Mais importante do que o logotipo e o conteúdo das edições, a primeira página é instituição e símbolo, quintessência do jornalismo, culminação do processo de buscar, organizar e hierarquizar informações a serviço do interesse público.


Front Page, peça de Ben Hecht, além do sucesso na Broadway, foi filmada duas vezes. ‘La Une’, na França, é um espaço mítico. No Brasil, há jornais capazes de vender seus editoriais mas resistem à colocação de anúncios na primeira.


A avacalhação do mito começou devagar, mas prosseguiu firme. Primeiro foram semicapas publicitárias cobrindo parte da verdadeira. Depois vieram falsas capas ocupadas por anúncios inteiros ou escondidas dentro de envelopes e embrulhos.


Quebrada a vitrine, fácil roubar a loja inteira. O assalto final à sacralidade da primeira página começou a ser perpetrado no Estado de S. Paulo de domingo (20/7), com a campanha de lançamento do novo carro da Nissan: uma falsa capa em papel especial, imitando uma maquete de página ainda incompleta. Os gênios da agência LewLara/TBWA imaginaram que seria muito ‘lúdico’ – palavra de ordem do mundo fashion – oferecer ao leitor a oportunidade de fazer a sua primeira página. Idiotice completa, dinheiro do anunciante jogado fora, ninguém entendeu aquela confusão de riscos e espaços em branco.


Responsabilidade social


No domingo seguinte (27/7), o golpe final: uma primeira página com aparência de autêntica, porém violentada por notícias adulteradas. E a manchete – ‘Cientista garante: é possível plantar aspargos em Marte’.


O leitor busca uma explicação e a encontra num cantinho, ao lado da venerável logomarca do Estadão: ‘Capa promocional’. Seria mais ousado assumir com todas as letras: ‘Capa prostituída’.


Num canto deste monumento kitsch – hino à decadência pós-moderna – a assinatura da agência e uma aula de jornalismo: ‘Um jornal que só traz notícia boa é fora do padrão’. Dentro do jornal um folheto convoca para a revolução: ‘Designers quadrados criam carros quadrados para cabeças quadradas’.


Ninguém obrigou os diretores, executivos e editores do jornalão a acolher esta palhaçada. Livre arbítrio é isso: cada um suicida-se da forma que lhe parece mais divertida.


A promiscuidade publijornalística foi exibida apenas nos exemplares para assinantes da cidade de São Paulo. Mas no momento em que se discute a regulação, na mídia eletrônica, da ‘liberdade de expressão comercial’, a Nissan, por intermédio da LewLara/TBWA, mostra o senso de responsabilidade social daqueles que só pensam em plantar aspargos em Marte.



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Em tempo [incluído às 17h27 de 29/7]: A TV Globo está fazendo o mesmo numa campanha de promoção da novela A Favorita, neste caso com um jornal inventado, O Paulistano. Finge um jornal para aumentar o ibope do folhetim das oito. A piada prossegue ao lado do logotipo do ‘periódico’: ‘Atualizando o cidadão paulista desde 1960. Fundado por Gregório Mattos’.