A viagem e a cobertura da ida e volta a Caracas, Venezuela, de oito senadores brasileiros é um excelente estudo de caso de como se fabrica notícia e se produz informação articulada com objetivo determinado. Não fosse tão elementar, a arquitetura da espetacularização mediática poderia até resultar em consequências políticas sérias para a soberania dos países do Mercosul, o que não quer dizer que não seja menos sério o possível estrago causado na subjetividade mal-informada de diversos setores da sociedade brasileira.
Os senadores foram à capital venezuelana pressionar o governo de Nicolás Maduro a marcar eleições legislativas e libertar o líder da oposição Leopoldo López, detido por insuflar a violência. O assunto foi manchete de cabeça da primeira página de O Globo de sexta-feira, 19 de junho: “Agressão a senadores – Brasil cobra da Venezuela explicação sobre incidente”; e ganhou manchete, página inteira e mais meia na seção Mundo do mesmo jornal. De acordo com as informações publicadas em O Globo, os parlamentares não realizaram a visita porque a van em que estavam ficou retida no engarrafamento ainda nas proximidades do aeroporto e foi “cercada por cerca de 50 manifestantes que gritavam palavras de ordem e pediam que os senadores fossem embora (…). Foram atiradas pedras e laranjas contra o veículo. Os manifestantes também empurravam o ônibus, gritando: ‘Chávez não morreu, se multiplicou’ e ‘Fora, fora’.” Segundo declaração do presidente do PSDB, Aécio Neves, que liderava a missão, “esmurravam os vidros, jogaram pedras e laranjas”. “Fomos agredidos”, disse Aécio.
A diplomacia brasileira foi acusada de negligente. Nosso embaixador na Venezuela, Ruy Pereira, também retido no engarrafamento – que, segundo o jornal, teve como causas a limpeza nos túneis de acesso ao aeroporto e a transferência de um preso, mas conforme noticiado nos jornais locais, inclusive os de oposição, o motivo foi uma carreta de farinha que tombou – foi criticado por Ronaldo Caiado, do DEM: “O embaixador foi nos receber no avião, nos colocou numa van e se mandou. Nos entregou de bandeja para os manifestantes como um Judas”, disse o senador, um dos integrantes da missão formada ainda por Aloysio Nunes e Cássio Cunha Lima, do PSDB, Sergio Petecão, do PSD, José Agripino Maia, do DEM, Ricardo Ferraço, do PMDB, e José Medeiros, do PPS. Na matéria, nosso embaixador negou a versão: “(…) Eu também estava retido no trânsito. Sei tudo o que aconteceu e quero dizer que não concordo com nada”, disse Ruy Pereira. A propósito do embaixador Ruy Pereira, por acaso testemunhei uma conversa em que um dos interlocutores, ao saber que ele era o nosso representante diplomático na Venezuela, se apresentou como chavista de carteirinha, ao que o embaixador respondeu: “Eu sou brasileiro e meu país está acima de qualquer coisa.”
Incentivo a ações violentas
No fogo da denúncia, a cobertura acabou queimada por falta de uma série de importantes perguntas e informações que não resistem à análise retórica de verificar o tudo dito de um lado e omitido de outro. Por exemplo, dos quatro detidos, Daniel Ceballo e Leopoldo López são os que se encontram no presídio de Ramo Verde. Antonio Ledezma, acusado de conspiração contra o governo, está em prisão domiciliar e Enzo Scarano, condenado por levantar barricadas no município de San Diego, onde era prefeito, já foi libertado.
Leopoldo López não está preso por delito de opinião, mas por incitar à violência que causou a morte de 43 cidadãos. Em 2013, no mesmo dia da eleição de Nicolás Maduro à presidência, a oposição disse não reconhecer a vitória por pequena margem de votos e convocou os derrotados a “saírem a manifestar sua indignação”. O resultado foi a morte de oito eleitores chavistas e o cerco armado na porta do canal de televisão TeleSur, num flagrante atentado à liberdade de imprensa.
Foi um confronto de consequências tão brutais que Henrique Capriles, nome de peso na oposição ao bolivarianismo, passou a falar em “denunciar sem violência” e se retirou da estratégia antes encaminhada por ele e Leopoldo López. Leopoldo continuou. Criou o movimento La Salida [A saída], em que pregava “realizar todo tipo de ato capaz de desestabilizar o governo” e articulava grupos estudantis para que utilizassem “mecanismos não pacíficos para poder expressar sua frustração”. Entre 2013 e 1014, diversas cidades da Venezuela se transformaram em praças de guerra e o embate resultou em 46 mortes e 900 feridos, entre civis e militares.
Daniel Ceballo, que era prefeito de San Cristóbal, foi preso por dar apoio e incentivar ações violentas como a guarimba, as barricadas que protagonizaram situações de guerra na região. O jornal não informou que o Comitê de vítimas da guarimba divulgou nota em que “rechaça apoio de senadores brasileiros aos responsáveis pela violência política na Venezuela”.
Bando de trapalhões
Faço-o agora:
“Comitê de vítimas de la guarimba rechaça apoio de senadores brasileiros aos responsáveis pela violência política na Venezuela.
Ante a visita ao nosso país que realizam alguns representantes da Comissão de Senadores da República Federativa do Brasil, encabeçada pelo ex-candidato presidencial e senador Aécio Neves, vítimas e familiares das vítimas da violência política ocorrida na Venezuela em 2014 expressam o seguinte:
Rechaçamos que estes senadores brasileiros advoguem pela liberação dos autores materiais e intelectuais da violência política que ocorreu em nosso país durante os meses de fevereiro a junho de 2014, em particular Leopoldo Lopez e outros líderes políticos que promoveram o plano de insurreição ‘A Saída’, que causou a morte de 43 pessoas e 878 feridos.
Condenamos a interferência dos representantes da Comissão de senadores da República Federativa do Brasil, liderados pelo ex-candidato presidencial e senador Aécio Neves, que visam promover a impunidade para os responsáveis por tão graves acontecimentos.
Exigimos que não se continue utilizando o tema dos direitos humanos como ferramenta política para tentar justificar e legitimar tais fatos que constituem verdadeiros atos de violência e crimes, e que não se tente invisibilizar as vítimas da violência instigadas politicamente por setores radicais da oposição venezuelana.
Solicitamos que esta Comissão do Senado brasileiro realize uma reunião com as vítimas e as famílias das vítimas deste Comitê para que tomem conhecimento do testemunho de todas as famílias afetadas por esses crimes.
Apelamos às autoridades do Estado venezuelano para que rejeitem as pressões que por diversas vias se tentam gerar, e mantenham-se firmes em sua vontade de fazer justiça às vítimas e punir todas as pessoas envolvidas nos lamentáveis acontecimentos, incluindo Leopoldo López e Daniel Ceballos.
Caracas, 17 de junho de 2015
Indira M. Bastidas Guzmán
Primera Secretaria – Primeira Secretária”
Também faltou informar aos cidadãos quanto custou a missão dos senadores aos cofres públicos brasileiros. Em tempos de extremo zelo em relação ao dinheiro do contribuinte não cabe a omissão. Mobilização de um avião da Força Aérea Brasileira para se deslocar a outro país para manifestar apoio a golpistas que tentam derrubar um governo eleito pela vontade dos seus nacionais parece ato de um bando de trapalhões. E jornalismo sério não dá crédito nem espaço a enredos desse nível. É isso que os bons professores ensinam nas faculdades de jornalismo com o firme propósito de que os alunos aprendam.
***
Maria Luiza Franco Busse é jornalista, semióloga e pós-doutoranda em Comunicação e Cultura