Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Até onde a imprensa brincará de investigar?

Por força do trabalho, quase semanalmente me vejo na condição de passageiro de uma companhia aérea, seus atendentes que não atendem, seus aviões que partem e, portanto, pousam fora de horário, e, sendo assim, sou também obrigado a circular por aeroportos desconfortáveis, com seus banheiros imundos e desorganizados.

É fácil perceber que tenho sido, nos longos últimos meses, mais um que tem sofrido por conta do descontrole existente por parte do governo federal sobre o sistema aéreo brasileiro. É importante que se diga que o governo federal não tem controle sobre os controladores de tráfego e tem ainda menos em relação às duas empresas que dominam a aviação civil brasileira, cobrando caro pelas passagens e oferecendo um péssimo serviço.

No dia 17, data do terrível acidente com o avião da TAM, estava em São Luís, e no dia seguinte pela manhã viajaria para São Paulo em vôo da mesma empresa para o aeroporto de Congonhas. As cenas transmitidas pelas emissoras de TV eram chocantes. Percebia-se claramente que não haveria sobreviventes entre os ocupantes daquele avião.

Sem evidência alguma

A partir daí, passamos a ouvir jornalistas e especialistas apresentarem todas as suas hipóteses para o acidente. ‘O acidente foi causado pela pressa em entregar a pista!’, bradava um engenheiro. ‘O acidente foi causado pela falta das ranhuras!’, afirmava um pesquisador. ‘A irresponsabilidade é do governo, que nada fez nesses meses e acabou por provocar esse acidente!’, dizia outro. ‘A culpa é da Infraero que não fechou a pista depois da derrapagem do avião no dia anterior!’, argumentava alguém.

Muitas foram as explicações dadas por especialistas encontrados por jornalistas das empresas de comunicação. Mas o que me chocou – claro que nem tanto quanto o acidente – e me deixou estarrecido, foi ler o artigo de um psicanalista e colunista da ‘Revista da Folha’, publicado na Folha de S.Paulo (19/7), de nome Francisco Daudt.

Afirma o psicanalista que sua dor diante do acidente seria amenizada se algum jornal (quem sabe, o que dá espaço aos seus artigos) estampasse uma manchete em letras garrafais ‘GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS’. E, para justificar a sua acusação ao governo de responsabilidade pelas mais de 200 mortes no trágico acidente, o psicanalista lista a frase imbecil da amiga psicanalista e ministra, a frase do presidente cobrando data e hora para se resolver a crise aérea, o acidente da Gol e todas as demais mazelas envolvendo membros do governo. O senhor psicanalista, porém, não apresenta evidência alguma de culpa do governo no acidente, nem mesmo as famosas ranhuras na pista e que ainda não foram realizadas.

Abrigando um irresponsável

Não quero defender governo algum, mas me estarrece um jornal que se pretende progressista, comprometido com a investigação e a busca da verdade, dar espaço para um indivíduo que escreve um artigo e aproveita para transformá-lo em uma peça de acusação rasteira e sem compromisso em estabelecer qualquer vínculo com a realidade dos fatos.

Fico me perguntando: o que dirá o sr. Daudt se o acidente foi provocado por uma falha mecânica? Ou se foi uma falha dos comandantes da aeronave? Ou se a aeronave estava com peso acima da capacidade por ordem da empresa proprietária? E a Folha, o que fará? Cortará seu rabo, como já deveria ter feito em outras ocasiões?

É aceitável que o cidadão anônimo, que sofre cotidianamente diante das desigualdades existentes em nosso país, que enfrenta filas nos hospitais e repartições públicas, que não teve acesso a uma escola de qualidade, que sobrevive, apesar de tudo e das elites, diga e afirme que a culpa é do Lula, do papa ou do seu vizinho que ele não suporta.

Inadmissível é que um cidadão que assina como psicanalista e colunista de um jornal nacional aproveite esse espaço para afirmar inverdades em letras garrafais e sem apontar as ações do governo que diretamente provocaram a morte de mais de duzentas pessoas. O senhor Daudt está brincando com a dor de todos aqueles que sofreram diante da tragédia. A Folha está dando abrigo a um irresponsável.

Provavelmente Freud deve ter alguma explicação para o descontrole do psicanalista em relação ao Lula. Ou não?

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Educador, São Paulo, SP