Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aula de manipular e falsear fatos

O editorial do jornal nova-iorquino The New York Times publicado no jornal paulistano Folha de S. Paulo de 11 de agosto é de um cinismo e de uma hipocrisia singulares. Sob o título de ‘Premiê iraquiano ‘bane’ más notícias’, pretende dar uma ‘bronca’ no primeiro-ministro interino do Iraque, Ayad Allawi, pela situação caótica que o país está passando e pela proibição das atividades da TV al-Jazira em seu território. Vamos por partes.

‘Como premiê interino, Ayad Allawi deveria estar guiando o Iraque em direção a eleições democráticas. Porém, em suas primeiras seis semanas, ele começou a apresentar a mesma mentalidade autoritária que tem asfixiado a democracia em muitos países vizinhos. Seu último alvo é a al-Jazira, TV cujo noticiário, por vezes sensacionalista, é a principal fonte de informação não censurada para o mundo árabe’.

Incrível o poder de manipulação que o NYT procura ter. Quem mais censurou e proibiu a divulgação de notícias e imagens da invasão no Iraque foi exatamente o governo americano, numa aliança pseudopatriótica com a mídia ianque. Além da manipulação grosseira, da invenção de notícias, a imprensa dos EUA, de maneira geral, atuou como um órgão de propaganda das forças armadas. Todas as imagens do conflito eram censuradas. Só as permitidas pelo governo de Bush é que foram divulgadas ao público americano. Tudo em nome do patriotismo fanático e militarizado que ainda impera no país.

‘Alegando que a cobertura extensiva da al-Jazira sobre seqüestros e outros crimes encoraja a continuação da violência, a polícia de Allawi fechou a agência da rede em Bagdá no sábado por pelo menos 30 dias. O escritório só poderá reabrir se a al-Jazira concordar em mudar sua política. Interromper o noticiário da al-Jazira não irá pôr um freio na violência que tem destruído o Iraque nos últimos 16 meses. Mas pode livrar Allawi do constrangimento de tornar essa violência tão visível para uma audiência internacional. Pode, ainda, dar a seu governo mais liberdade para cometer abusos de direitos humanos e perseguir vinganças políticas pessoais em nome da restauração da lei e da ordem. A cobertura profissional, provocativa e partidária da al-Jazira não tem paralelo exato nos EUA, em parte porque o contexto jornalístico em que ela opera felizmente não tem paralelo aqui. Antes que a rede começasse a operar, em 1996, telespectadores árabes estavam limitados a transmissões estatais enfadonhas e desinformativas. Agora, dezenas de milhões de pessoas no mundo árabe vêem notícias que seus governos teriam gostado de silenciar’.

Outra vez percebe-se a mentira querendo se tornar verdade. O premier Allawi é um títere americano no Iraque. Foi imposto pelas autoridades ianques no cargo que ocupa. E como tal, muitas das suas ações têm a mão do governo dos EUA. A TV al-Jazira, desde o início da invasão, mostrou e divulgou imagens da guerra que incomodaram as forças armadas da coalizão anglo-americana. Cenas de civis iraquianos mortos pelas ‘bombas inteligentes’; destruição de edifícios públicos, mercados, escolas, hospitais, quando das ‘intervenções cirúrgicas’ dos militares nas cidades; a destruição completa do saneamento básico e do sistema de distribuição de água nos bombardeios contra a resistência islâmica; cenas de prisioneiros amarrados e encapuzados por soldados, num claro desrespeito às normas da Convenção de Genebra quanto ao tratamento de prisioneiros; e muitas outras imagens que correram o mundo árabe e o resto das nações.

Corrente pra frente

Na atual conjuntura iraquiana, de violentos e sangrentos combates contra a ocupação, a al-Jazira continua a incomodar a atual administração do Iraque. A violência existente no país árabe, nos últimos 16 meses, é fruto direto da invasão e da ocupação dos norte-americanos, e isso o editorial simplesmente não menciona. Faz de conta que, a partir de Allawi, tudo vai ser diferente, que a normalidade voltará etc. etc. Quem o NYT quer enganar, mais uma vez? Afinal, quem invadiu o país árabe?

‘Isso pôs a al-Jazira em conflito com governos árabes autoritários repetidas vezes – um precedente que Allawi não deveria estar tão ávido em seguir. A rede também atraiu críticas de funcionários americanos, como o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, por seu tom estridentemente nacionalista e pelos detalhes sangrentos na sua cobertura da guerra. Mais sensibilidade e menos estridência por parte da al-Jazira seriam certamente bem-vindos. Mas, no conjunto, ela tem sido uma força de mudança saudável e crucial. Com freqüência, ela sustenta praticamente sozinha a apresentação para o público de ações de governos antes não transparentes e o encorajamento de um debate mais amplo. O governo de Allawi deveria estar apontando a direção para um Iraque mais democrático em um Oriente Médio mais democrático. Ao se mover contra a al-Jazira, está fazendo justo o contrário.’

O que são, exatamente, os ‘detalhes sangrentos’ que o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, não queria que fosse mostrados? Cenas de destruição das cidades, os pedaços de corpos de civis espalhados pelas ruas, soldados americanos mortos, equipamentos da forças armadas destruídos, sacos com os cadáveres dos pracinhas ianques chegando aos EUA para serem enterrados e seus familiares chorando? Que sensibilidade maior o NYT quer da al-Jazira? A mesma que as TVs ianques tiveram ao mostrar uma guerra como se fosse uma novela ou um ‘reality show’, uma disputa de um campeonato de beisebol qualquer, com torcida organizada e tudo? Com todos gritando ‘Go USA!’, numa ‘corrente pra frente, salve a seleção’?

Na verdade, o editorial do NYT é uma peça de manipulação e de propaganda no melhor estilo estalinista, travestida de jornalismo barato. Daqueles bem chinfrins, que acham que estão dominando a área, querendo dar uma aula de moral, ética e de responsabilidade social, mas que não serve nem para embrulhar peixe. O cheiro do papel é insuportável …

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Jornalista