Pelo que você leu e ouviu do noticiário recente, identifique as afirmações falsas e as verdadeiras, entre as três abaixo, relacionadas ao ministro da Defesa, Nelson Jobim:
– Jobim disse que não lê jornal brasileiro;
– Jobim anunciou como verdadeira uma falsa descoberta dos primeiros destroços do vôo AF 447;
– A Força Aérea desmentiu o ministro e disse que eram lixo os destroços anunciados por ele.
Se você considerou verdadeira qualquer uma das afirmações acima, bem vindo ao rol de vítimas do ‘google sem fio’, fenômeno que cresce no ritmo de expansão das novas mídias. O processo é parecido com a antiga brincadeira do ‘telefone sem fio’. Alguém faz uma afirmação que é interpretada pelo interlocutor e passada adiante, gerando na ponta uma versão factual distinta da original (não estamos falando de interpretação diferenciada, e sim, de fatos alterados).
Os fatos e a interpretação
A principal diferença entre o fenômeno antigo e o novo, é que na brincadeira há um grupo fechado, com apenas um receptor a cada etapa do processo da comunicação, e no final as versões são confrontadas com a informação original. A diversão está em observar as distorções geradas no processo. Já no novo fenômeno, a versão reprocessada é imediatamente retransmitida para milhões de receptores, em sucessivas ondas, sem o confronto com a versão original.
Há duas condições básicas e simultâneas para surgir um ‘Google sem fio’ duradouro: alta credibilidade do veículo que o gerou e moderada gravidade do fato alterado. Caso o fato envolvido seja de altíssima gravidade, será inevitável que todos tenham acesso ao desmentido, interrompendo o processo. Foi o que ocorreu em 2008, quando uma emissora de TV brasileira assustou o mundo ao confundir um incêndio em um depósito de colchões próximo a Congonhas com um novo acidente de avião (como o objetivo é discutir o fenômeno, e não os atores, omitirei personagens). O episódio foi rapidamente esclarecido, e após mea-culpa de uns e silêncio de outros, apagou-se o vexame da memória coletiva.
Mas equívocos menos graves e menos palpáveis tendem a se consolidar. No caso dos destroços, o ‘Google sem fio’ começou quando uma emissora de TV (por coincidência a mesma dos colchões) reprocessou uma entrevista da Força Aérea Brasileira (FAB) e deu a seguinte manchete: ‘Aeronáutica contradiz ministro e afirma que peça no mar não é de Airbus’.
A sequência de fatos que gerou o ‘google sem fio’ foi a seguinte: a Marinha retirou do mar um pallet de madeira, que se acreditava ser destroço do voo AF 447. A Air France disse que aquele objeto não era do avião. E a FAB disse que uma mancha de óleo próxima ao pallet também não o era. A emissora, surpreendentemente, interpretou que, se o pallet e aquele óleo não pertenciam ao AF 447, também não podiam pertencer ao avião nenhum dos destroços que haviam sido avistados até então. Portanto, a FAB estava desmentindo Jobim.
Com sobrevida e filhotes
Como a emissora chegou a essa conclusão, é um mistério. A FAB não se referiu às áreas onde foram avistados os destroços originais, citados pelo ministro. Sequer havia sido descoberto um pallet no momento em que Jobim anunciou pela primeira vez às famílias e à imprensa, em 3 de junho, a descoberta de uma trilha de 5 km de destroços do avião. Esse fato, somado às descobertas anteriores (uma poltrona, objetos metálicos e uma macha de combustível com quilômetros de comprimento) é que apontavam para um desfecho para a tragédia.
O pallet de madeira foi recolhido a quase 200 km dos destroços originais. Era como se o ministro estivesse falando de muitos destroços avistados dias atrás em Goiânia, e a FAB estivesse falando de um pedaço isolado de madeira avistado e coletado naquele dia em Brasília. Lugares e objetos distintos passaram a ser tratados pela emissora, e pela maioria que a seguiu, como sendo a mesma coisa. A FAB e o Ministério da Defesa iniciaram amplo esforço na esperança de corrigir o equívoco.
Mas em 8 de junho, o ‘Google sem fio’ mostrou que tem sobrevida e dá filhotes. Durante entrevista coletiva em São Paulo, ao rebater críticas de jornais franceses que o consideraram precipitado, Jobim disse que não leu aqueles jornais (disse que só lia Le Monde e El País) e reafirmou as declarações iniciais sobre os destroços.
Os destroços informativos
Foi brindado com estas manchetes em dois dos principais sites brasileiros: ‘Jobim justifica alarme falso sobre destroços de avião’; ‘`Optei pela angústia dos familiares´, disse Jobim sobre declarações erradas’. E no dia seguinte surgiu a versão de que o ministro não lia jornal brasileiro, embora na entrevista a discussão fosse apenas sobre jornais estrangeiros.
Se podemos menosprezar a anedota da leitura dos jornais (afinal, o ministro diz ter ‘costas de crocodilo’), não podemos ignorar os danos causados à imagem do Brasil pela falsa notícia de que os primeiros objetos visualizados não eram do avião. Mesmo hoje, após o sucesso na recuperação de dezenas de corpos e destroços, muitos brasileiros e estrangeiros ainda acreditam que as primeiras informações estavam realmente erradas.
De acordo com essa visão que ainda prevalece, o sucesso nas buscas só teria aparecido após a correção do suposto ‘planejamento errado’ dos primeiros dias. Uma mancha desnecessária e injusta em um trabalho metódico, contínuo, heróico e exitoso, desenvolvido desde os primeiros dias pela Força Aérea e pela Marinha brasileiras, em coordenação com o ministério da Defesa.
Os destroços do avião estão sendo recolhidos para contar em algum momento a história do acidente. Para nós, jornalistas, estejamos no exercício da profissão ou em atividades afins da Comunicação, fica o desafio de lidar com os destroços informativos que cada vez mais se agitarão à nossa volta.
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Jornalista, coordenador de Comunicação Social do Ministério da Defesa