O humor tem mais tempo de parede do que de jornal. Afinal, ainda há caricaturas nas ruínas de Pompéia, e a palavra cartoon nasceu da gozação da revista inglesa Punch com os projetos dos novos murais do Palácio de Westminster, em 1841, expostos em cartão.
Apesar da grande intimidade do cartum e do desenho de humor em geral com o papel impresso, há um evento que acontece no mundo inteiro e se converteu em mais uma mídia para essa arte: o Salão Internacional de Humor.
O site Witty World lista mais de 150 salões de 41 países que têm pelo menos um evento. O Salão Internacional de Piracicaba (SP) é um dos tradicionais (32 anos), mas há de todas as idades – desde o veterano Bordighera (Itália), fundado em 1947, até o novíssimo World Press Cartoon de Sintra (Portugal), fundado este ano.
Os prêmios podem variar da simples participação em catálogo a polpudos dois milhões de ienes oferecidos pelo jornal Yomiuri Shimbun. Uma matéria de Diego Assis na Folha de S. Paulo (‘Viver ou sobreviver de salão?’, Ilustrada, 2/1/2005) sugere que os salões podem ser uma fonte alternativa de renda para os humoristas gráficos.
Por serem internacionais, esses salões oferecem ao desenhista de humor a chance e o desafio de se comunicar com leitores do mundo inteiro. Não é a mesma coisa que fazer rir o leitor de sua própria cidade ou satirizar o político local. O cartunista desses eventos procura ser internacional ou universal: seja satirizando acontecimentos e pessoas conhecidos no mundo inteiro (é o caso da charge e da caricatura), seja buscando temas sempre presentes na experiência humana (o cartum propriamente dito, a forma de humor gráfico que beira o filosófico).
Assim, há uma grande tendência em se produzir um tipo de humor especialmente feito para os festivais: em geral sem palavras, para poderem ser eloqüentes em qualquer língua (textos e legendas em inglês são tolerados, mas não costumam estar entre os premiados) e graficamente bolados para serem vistos em exposição (daí a razão da preferência que se dá ao envio de trabalhos originais, no lugar de cópias, o que dá ao visitante um prazer adicional em ver a ‘obra’ de perto).
Presença do étnico
Neste aspecto, o já citado Salão de Sintra faz uma restrição rara entre os festivais: só aceita trabalhos publicados dentro de certo período e exige que cada original ou cópia assinada seja acompanhada ‘da página de publicação respectiva, em que data e título do jornal ou revista sejam visíveis’. Como o nome diz, o foco do World Press Cartoon de Sintra é o mundo do humor gráfico de imprensa.
A limitação aos profissionais de imprensa é quase uma exceção no mundo dos salões de humor. Há amadores que são campeões de ‘humor de salão’ – usei dois parágrafos acima a expressão ‘visitante’ e noto agora como é apropriada; é muito diferente do que criar um cartum para um ‘leitor’ que folheia uma publicação. Na verdade, nos salões de humor, freqüentemente criamos mais para os jurados do que para o público. E nos adestramos em agradar ao jurado internacional, o que pode gerar o círculo vicioso de nos pautarmos nos ganhadores de salões passados. Talvez por isso se perceba nitidamente um ‘humor de salão’ que não se parece muito com o humor impresso.
Mesmo o World Press Cartoon cria um filtro, forçando cada humorista gráfico a escolher, em meio a sua produção publicada, aquilo que seja melhor compreendido por um júri internacional. Daí a freqüência de Bushes, guerrilheiros e homens-bomba na categoria ‘cartum editorial’ dos salões internacionais, ou charge, como chamamos no Brasil.
O Brasil mandou o maior número de concorrentes (23 coleguinhas mais este que vos tecla, representando o Observatório). Cau Gomez, de A Tarde, pegou o segundo lugar em Caricatura, com o internacional Ronaldinho Gaúcho. O argentino Crist, do Clarín, recebeu o Gran Prix, com seu ‘Indígena Virtual’, mostrando que a ponte entre o universal e o internacional passa pelo étnico.
O melhor em Caras
Na categoria Desenho de Humor, é onde encontramos o cartum em sua forma pura, a piada gráfica que nem sempre faz rir, o desenho filosófico desvinculado da notícia. Os vencedores no Salão de Sintra 2005 foram dois poloneses e um húngaro, o que reflete a tradição do Leste Europeu nesse tipo de humor. Mais ainda, é uma categoria praticamente inexistente na imprensa brasileira. Até os anos 1970, sua presença era fortíssima entre nós: além das revistas que dedicavam espaço ao desenho de humor (O Cruzeiro, Senhor, Realidade, Status), havia livros, jornais e revistas em que o cartum era o prato principal. Hoje o máximo que se encontra nas bancas são as revistas de piadas populares (de português, sogra, gay etc.).
Pode ser que os anos de chumbo tenham feito os nossos humoristas direcionar seu fogo para a política, e os veículos desaprenderam a editar humor. Angeli cansou da política, criou um mundo de personagens e voltou a ela, renovado. Laerte produz cartuns disfarçados em tiras na Ilustrada, da Folha. Cartuns propriamente ditos estão ausentes da imprensa, talvez porque o cartum seja filosófico demais e como a filosofia, de fato, ‘não serve para nada’. Estamos muito utilitaristas, publicando só desenhos que servem para criticar ou vender.
A melhor publicação de cartum da imprensa brasileira – cartum-cartum, como aqueles do Leste Europeu que ganharam em Sintra ou como os que os brasileiros só conseguem veicular nos outros salões de humor internacionais – tem sido a revista Caras, que inexplicavelmente publica o sofisticadíssimo Sempé. Vá entender os editores…
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O World Press Cartoon foi criado em 2005 pelo cartunista português António Antunes. Clique aqui para ver os premiados em .
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Cartunista e ilustrador