Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Barricadas radiofônicas

A renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, deixa o país perplexo. João Goulart, o vice-presidente eleito, está em viagem oficial à China. Os militares não aceitam a posse do vice e anunciam que prenderiam Goulart quando desembarcasse no Brasil. O golpe está armado.

Em Porto Alegre, o governador Leonel Brizola (1922-2004) resolve resistir. Com metralhadora e microfone em mãos, passa a transmitir pelo rádio discursos contra os golpistas e pela legalidade da posse de Jango. O comandante do 3º Exército, do Sul, recebe ordem para bombardear o Palácio Piratini -e não a cumpre.

Uma multidão vai para a praça da Matriz, onde fica a sede do governo estadual. Estudantes arrancam bancos de cimento e fazem barricadas. Sargentos se rebelam. Armas são distribuídas a voluntários civis. O Exército no Sul apoia a campanha. O golpe é contido -ou, melhor, adiado.

Jango volta e toma posse em 7 de setembro, sob um recém-implantado parlamentarismo.

Rebordosa

A história completa 50 anos e ainda está viva na memória de Carlos Bastos, 77, então repórter da Última Hora. Lembra que a renúncia provocou uma “rebordosa”: “Fiquei morando no palácio por 12 dias. Só ia para casa para tomar banho e trocar de roupa. Recebi um revólver”.

A 2.000 km dali, Almino Affonso, 32 anos, líder do PTB (partido de Jango) na Câmara dos Deputados, discursou logo após a renúncia -que, diz à Folha, “na minha opinião, de forma intuitiva, era um golpe que Jânio tinha tentado fazer através do gesto” (leia a íntegra em folha.com/ilustrissima).

A mesma visão tem Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de livros sobre o período. Na época repórter do Diário de Notícias carioca, cobriu a campanha eleitoral de Jânio. “Ele manifestava inconformismo por ter de governar dentro dos marcos legais; queria poderes extraordinários”, avalia, em entrevista à Folha (leia a íntegra em folha.com/ilustrissima).

Jânio não obteve apoio para voltar com poderes ditatoriais. Desagradava à direita, em razão de sua política externa independente, e à esquerda, que protestava contra a sua política econômica. Autor de Raízes do Golpe [Marco Zero, 1988], Almino recorda que a Campanha da Legalidade “levantou o Rio Grande do Sul, com Brizola tendo um apoio fantástico, com o povo nas ruas. O país inteiro acompanhava. Meus pais moravam em Porto Velho e ouviam pelo rádio e me narravam depois”.

Ondas curtas

O governo federal tinha fechado três rádios por divulgarem os manifestos de Brizola. O governador então mandou transferir para os porões do Piratini os estúdios da rádio Guaíba, com os transmissores protegidos pela Brigada Militar (a PM gaúcha). Outras 15 rádios do país e do exterior se incorporaram à Cadeia da Legalidade. Por ondas curtas, os discursos e despachos eram traduzidos para várias línguas.

No “porão da legalidade” do Piratini, Erika Kramer era uma das poucas mulheres. Tinha 23 anos e estudava jornalismo. Conta que foi incumbida de fazer a redação e a locução em alemão das transmissões da rádio. Filha de imigrantes de Hamburgo, ela aprendera a língua com os pais, que produziam aspargos e frutas em Pelotas. “Fiquei 12 dias fazendo noticiário, na base de cafezinho e sanduíche. Fazíamos pelo civismo”, afirma.

A situação ficou mais tensa quando um radioamador interceptou uma mensagem com a ordem de que a Força Aérea e o 3º Exército bombardeassem o Piratini. Ninhos de metralhadoras foram instalados no alto do palácio e na vizinha catedral. Carros, jipes, sacos de areia e bancos defendiam o lugar. O comandante militar da região, general José Machado Lopes, pediu um encontro com Brizola, que de metralhadora em punho, pegou o microfone no porão do palácio e fez um célebre discurso. Alguns trechos:

“Não nos submeteremos a nenhum golpe. Que nos esmaguem. Que nos destruam. Que nos chacinem nesse palácio. Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada. O certo é que não será silenciada sem balas. Resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Podem atirar. Que decolem os jatos. Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo. Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência de nosso povo.”

O jornalista Bastos, que estava no Piratini, afirma: “Quando Brizola começou a falar, havia umas 5.000 pessoas na praça da Matriz. Cinquenta minutos depois, quando ele acabou, eram mais de 50 mil”. A massa esperava a chegada do comandante do 3º Exército.

Brizola

Leonel Brizola era filho de pequenos agricultores do interior gaúcho. Seu pai tinha morrido na guerra civil gaúcha de 1923. Pobre, foi engraxate, vendedor de jornais, operário. Chegou a Porto Alegre só com o dinheiro da passagem. Formou-se engenheiro e entrou para a política.

Governador a partir de 1959, ampliou a rede de escolas, fez um programa de moradias populares, encampou empresas estrangeiras (telefonia e eletricidade). Joaquim Felizardo, no seu sintético A Legalidade, Último Levante Gaúcho [UFRGS, 1988], chama a atenção para o fato de Brizola ser, naquele momento, um tipo novo de liderança, deixando para trás os tradicionais grandes proprietários de terras e superando o legado de Getulio Vargas.

“O governador era uma espécie de tribuno da plebe”, escreve o historiador, ao explicar as razões da adesão popular à Campanha da Legalidade. Citando o historiador Décio Freitas, Felizardo ressalta que os gaúchos estavam incomodados também pelo rearranjo de poder no país: “A crescente hegemonia do capital monopolista instalado no Sudeste solapava as bases tradicionais da economia sul-riograndense e acentuava a desigualdade do desenvolvimento econômico”. Alguns mais radicais previam que o Estado viraria um “outro Nordeste”.

Nesse contexto, crescia o movimento tradicionalista e a proverbial valentia gaúcha era acalentada. O lema da Revolução de 30 (“Rio Grande, de pé pelo Brasil”) valia em 61. Bombachas e chimarrão eram os símbolos daqueles “indignados” de 50 anos atrás. “Brizola foi o último porta-voz dessa referência cultural. Soube apelar para os valores do inconsciente coletivo”, analisa Felizardo. Anos mais tarde, Moacyr Scliar captaria as contradições do momento no romance Mês de Cães Danados – Uma Aventura nos Tempos da Legalidade [L&PM, 1977]. Na trama vigorosa, a tradicional família gaúcha encara a miséria e a sarjeta. Naquele 61, Erico Verissimo finalizara o seu épico O Tempo e o Vento.

Militares

Na Matriz, os militares chegam para falar com Brizola no palácio. Há quem ache que o governador pode ser preso. O historiador Jorge Ferreira, autor de João Goulart, uma Biografia [Civilização Brasileira, 2011], em entrevista à Folha, relata: “Machado Lopes e os generais chegaram num jipe. Nas escadarias do palácio, diante deles, havia cerca de 100 mil pessoas. O silêncio era enorme. Quando eles subiram as escadas (permitindo que a população os visse), alguém começou a cantar o Hino Nacional. Machado Lopes e os generais pararam, viraram-se para o povo, botaram a mão no peito e também cantam o hino. Milhares de pessoas choraram nesse momento” (leia a íntegra em folha.com/ilustrissima).

No palácio, Machado Lopes comunica oficialmente a Brizola que os generais do 3º Exército “decidiram, por maioria de votos, que só aceitam a solução para a crise dentro da Constituição; por conseguinte, com a posse do vice-presidente”. O 3º Exército aderia à legalidade e desafiava a junta militar golpista. Lá fora, a multidão festeja.

Aos 61 anos, Machado Lopes comandava a maior força militar brasileira: 120 mil homens no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, anotam os jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton na detalhada narrativa de 61, Que As Armas Não Falem [Senac, 2001]. O general não era um esquerdista infiltrado: ao contrário, foi um opositor do tenentismo, da Coluna Prestes e lutara contra os comunistas em 1935.

Moniz Bandeira aponta a existência de distintas tendências nas Forças Armadas, com maioria para os legalistas. Para ele, a Guerra Fria alterou o quadro: “Os EUA modificaram sua estratégia e passaram a incentivar a participação dos militares na política interna de seus países.” O objetivo era conter o avanço do comunismo. “Na Campanha da Legalidade, pela primeira vez a cisão nas Forças Armadas se expressou publicamente”.

“1961 foi um desastre para o Exército”, resumiu Golbery do Couto e Silva, ideólogo da ditadura, citado por Amir Labaki em 1961, A Crise da Renúncia e A Solução Parlamentarista [Brasiliense, 1986].

Nelson Werneck Sodré, no seu História Militar do Brasil [Expressão Popular, 2010], enfatiza o ineditismo da resistência de Brizola. “Pela primeira vez, pagava-se para ver. Os golpistas precisavam enveredar para a luta ou recuar. Ora, golpe em recuo não existe”, constata. A junta tentou começar a armar o seu esquema, mas a coisa degringolou. “Começaram a surgir as resistências, as dissensões, as negativas, culminando com generalizada desobediência.”

Aviões

Foi o que aconteceu na Base Aérea de Canoas, nos arredores de Porto Alegre, cujo comandante era fiel à junta golpista. Lá, os sargentos se rebelaram, esvaziaram os pneus dos jatos, desarmaram os aviões e se deram as mãos na pista de decolagem, formando uma barreira humana a impedir a saída dos voos para o bombardeio ao palácio.

Porto Alegre tinha 635 mil habitantes; em apenas cinco dias, 45 mil deles se inscreveram para participar da resistência e entraram em filas para receber armas e treinamento. Um antigo arsenal da Brigada, comprado no início dos anos 30 para um eventual confronto com Getulio, foi distribuído. “Brizola armou a população em Porto Alegre. No interior, o trabalho foi feito pelos Centros de Tradições Gaúchas, com armas artesanais, como lanças e facões”, diz o historiador Ferreira, emendando: “É interessante que, ao final da crise, todos os que receberam as armas as devolveram”.

Emílio Neme, 85, que era então subchefe da casa militar de Brizola, fala à Folha. “Fui à fábrica da Taurus e requisitei 300 revólveres para distribuir para os que estavam no palácio.” Hoje, reconhece: “Fiz coisa errada. Não pedi os revólveres de volta. Ficaram de recordação para as pessoas”.

Havia comitês de apoio de estudantes, bancários, intelectuais, ferroviários, artistas. Tradicionais rivais, Grêmio e Internacional suspenderam o jogo de domingo e declararam apoio à campanha. Para Sereno Chaise, 83, que era líder do PTB na Assembleia Legislativa, a legalidade foi o movimento cívico que produziu a maior unidade na história do Sul.

Em Vozes da Legalidade [Sulina, 2011], Juremir Machado da Silva mostra que a campanha até hino teve, composto “no improviso, no calor do combate” pelo ator Paulo César Pereio e pela escritora Lara de Lemos, com melodia que misturava a Marselhesa e o hino brasileiro. A inspiração não foi intencional, lembra ele, que na época tinha 20 anos e fazia parte do comitê de resistência democrática do grupo Teatro de Equipe. “Era muito heroísmo”, disse Pereio à Folha.

Jango

Enquanto isso, Goulart fazia sua viagem de volta da China, passando por Paris, Nova York, Lima, Buenos Aires, Montevidéu. Jango, filme de 1984 de Silvio Tendler, começa com imagens curiosas da visita ao presidente Mao e mostra o desenrolar da crise, que desaguaria no golpe de 64.

Em 61, no epicentro das negociações em torno do parlamentarismo, estava Almino Affonso, contrário à mudança. “Chamei de golpe branco, porque a Constituição não poderia ser emendada num clima de convulsão política. Era ilegal.” Mas, no próprio PTB, surgiram os apoiadores à tese de acomodação. A saída negociada foi acertada por Tancredo Neves, futuro primeiro-ministro, conversando com Jango em Montevidéu.

Para a capital uruguaia, com um grupo de jornalistas, foi Lucídio Castelo Branco. Tinha 23 anos e queria entrevistar Jango. “Ele me chamou por volta da meia-noite e disse que, a partir daquele momento, eu ia ser o seu secretário de imprensa e que precisava comunicar que não haveria entrevista. Quase apanho dos colegas”, diz.

Com Jango, embarcou para Porto Alegre num Caravelle da Varig e viveu momentos de pavor. “O comandante disse que o voo era de emergência, viajava na escuridão completa. Na descida, embicou de um jeito que eu morri de medo. Fiquei apalermado. Só consegui sair do avião 15 minutos depois do pouso.”

No Piratini, por imposição de Tancredo, Jango não discursa. Como faria em 1964, evita o confronto e o risco de guerra civil. Num misto de vitória e frustração, a multidão vaia um Jango silencioso.

Brizola ainda pede que Jango não aceite o parlamentarismo e marche com o 3º Exército até Brasília. Em entrevista a Markun e Hamilton, em 2001, Brizola asseverou: “Nós venceríamos facilmente. Tropas do Sul se juntariam a outras por toda parte. A resistência seria localizada num nucleozinho. Seria uma marcha vitoriosa para uma mudança no país”.

Moniz Bandeira discorda: “A marcha sobre Brasília não seria simples passeata. Haveria luta armada. Carlos Lacerda, governador [do então Estado] da Guanabara, tinha apoio militar e estava envolvido no golpe”. Almino, que agora escreve outro livro sobre o período (João Goulart, Uma Revisão da História), defendeu, naquele momento, a marcha, assim como Brizola. Hoje, pensa diferente. “Acho que Jango teve um gesto de grandeza. Tinha legitimidade para assumir, mas não queria sangue. Acho isso nobre.”

O jornalista Jayme Keunecke, então com 26 anos, acompanhou Goulart na volta a Brasília. À Folha, recorda o temor de que uma chamada “operação mosquito”, de militares golpistas, derrubasse o Caravelle da Varig. Mas o voo foi tranquilo. “Jango fumava muito e tomava muito chimarrão”, lembra o repórter.

Legado

Ministro da Defesa do governo Lula, Waldir Pires, 84, era deputado naqueles tempos tumultuados. Para ele, “o grande legado da legalidade foi o impedimento do golpe. Mas a lição não foi aprendida, porque depois houve 1964. O golpe foi simplesmente adiado”.Pires conecta a tentativa de golpe de 61 com a de 55, uma tentativa de impedir a posse de JK. “Brizola foi em 61 o que [Henrique] Lott foi em 55”, compara.

Já Almino pensa que não se deve avaliar o episódio como apenas um veto dos militares a Jango. Para ele, Goulart no poder significava “a volta do Getulio de 1950”, e “muitas lideranças militares eram contra o monopólio estatal do petróleo e queriam maior participação do capital internacional”.

“Ainda estávamos numa etapa democrática muito pobre”, afirma Almino. Em contraponto, Ferreira argumenta que o legado do movimento foi mostrar que a sociedade era apegada à democracia. “A junta militar apertou o botão do golpe, mas a sociedade reagiu e não concordou. Golpes não dependem da vontade de generais; exigem apoio social”, declara.

Naqueles dias, o governador de Goiás, Mauro Borges, aderiu à campanha. Várias entidades civis pelo Brasil também apoiaram. Uma mobilização que, para Almino, reapareceu nas “Diretas-Já”, em 1984. Mas ele desabafa: “Minha tristeza é que não acho que tenhamos evoluído tanto. Apesar da retomada democrática, os partidos, sem exceção, não têm democracia interna e militância política. São caudilhos com nomes diferentes”.

Na praça da Matriz, em setembro de 61, a chuva dispersou a multidão. O “porão da legalidade” foi desativado. Agora, 50 anos depois, vai virar museu.       

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[Eleonora de Lucena é jornalista da Folha de S.Paulo]