Nunca a privacidade jurídica foi tão violada como na atualidade. Escândalos envolvendo celebridades se tornaram capa de muitas publicações ao redor do mundo como se fosse o oxigênio que as mantém vivas. Estas duas situações dividem uma mesma característica: a necessidade de se tornar abertos detalhes que o público em geral jamais teria acesso. E um fator materializa a viabilidade desse objetivo: o fato de que as informações precisam ser transmitidas via papel, seja em cartas, mandados ou depoimentos.
Ideologicamente na contramão da era digital, o papel continua desempenhando papel vital na sociedade moderna e torna-se eventual objeto de desejo pelas informações valiosas que pode conter. Desde 1997, internautas de todo o mundo passaram a divertir-se com documentos que deveriam ser sigilosos e registros bizarros envolvendo pessoas famosas e/ou comuns, que ganharam a luz dos holofotes com o trabalho desenvolvido pelo sítio norte-americano The Smoking Gun. Baseado na premissa de revelar o impublicável, o sítio tornou-se referência pela obtenção de informações de acesso restrito e pela filosofia de que a notícia não é a primeira versão da história, mas sim os documentos nos quais as notícias são baseadas.
A gama do material coletado inclui boletins de ocorrência, processos, memorandos e até relatórios de divórcios de astros e estrelas do cinema. Vale todo registro formal de qualquer situação constrangedora. Fixado na premissa de que toda história deixa uma fascinante trilha de papel, The Smoking Gun desempenha um papel jornalístico que poucos veículos de imprensa conseguem encampar. Através de extensa pesquisa, requisições formais e contatos diretos com advogados, policiais, espiões, burocratas e até cidadãos irritados, a proposta ampara-se na Lei do Ato de Liberdade da Informação, promulgada pelo presidente Lyndon Johnson, em 1966, nos Estados Unidos.
O princípio da lei era de que uma democracia eficaz funciona quando as pessoas têm acesso a todas informações que a segurança da nação permite. Anteriormente a essa lei, os norte-americanos precisavam protocolar uma requisição perante o governo para evidenciar a necessidade do acesso a certos documentos. Em 1974, na esteira do escândalo Watergate e da queda do presidente Richard Nixon, o Congresso norte-americano derrubou um veto do presidente empossado Gerald Ford que restringia o acesso a documentos do caso, com base na tal lei.
Reforma contestada
A lista de conquistas de The Smoking Gun é extensa. E bastante peculiar. Perfeita para satisfazer ao interesse do mais curioso visitante. Um belo exemplo de documento ‘suculento’ publicado pelo sítio é a íntegra do processo contra ex-atleta e ex-ator O.J. Simpson por ‘fazer gato’ na instalação de TV por assinatura na sua residência na cidade de Miami, em 2004. Cabe lembrar que Simpson foi absolvido em 1993 da acusação de ter assassinado sua então mulher Nicole Brown Simpson e um amigo.
O processo movido pela empresa DirecTV detalhou que Simpson instalou dois ‘pontos frios’ de TV via satélite em sua casa e exigia 20 mil dólares de indenização, mais 850 dólares de honorários jurídicos. O relatório inteiro do processo, composto por dez páginas, está reproduzido no sítio. A DirecTV tomou conhecimento do fato da pirataria promovida por Simpson após uma investigação movida pelo FBI e polícia de Miami, na qual grampos telefônicos foram usados para confirmar os ‘gatos’ através de diálogos de O.J..
Em janeiro de 2005, a família Simpson voltou a ser destaque em The Smoking Gun (os descendentes de Orienthal James, não o desenho). A filha de O.J., Sydney Simpson, de 19 anos, envolveu-se numa briga após um jogo de basquete universitário, também Miami. A polícia interveio e a estudante acabou xingando e dando um tapa num policial. Sydney foi presa por conduta desordeira e indiciada por resistência à prisão. O boletim de ocorrência está no sítio para quem quiser ler.
Se o leitor ainda lembra do cantor pop Prince – um ícone dos anos 1980 –, leia esta. Na segunda-feira (20/3), The Smoking Gun noticiou que o astro está sendo processado pelo seu senhorio sob a alegação de uma ‘reforma brega’ na mansão em que mora na cidade de Los Angeles, na Califórnia.
Carlos Boozer, jogador de basquete pelo time Utah Jazz e dono da mansão, está acionando o cantor na Justiça pelas mudanças que realizou na sua propriedade – tais mudanças incluem a pintura da fachada e interiores na cor roxa, instalação de carpetes com monogramas do cantor e construção de um novo encanamento para transferência de água para um salão de beleza construído no interior da propriedade. Os detalhes contidos nas seis páginas do processo estão à disposição dos leitores, que também ficarão sabendo que Prince paga 70 mil dólares de aluguel por mês por um imóvel que vale cerca de 12 milhões de dólares. Nada mal para dez quartos e onze banheiros.
Galeria de pérolas
Detalhe técnico foi o que não faltou no contrato para vaga de empregada doméstica, redigido pelo ator Tom Cruise ainda na época do seu casamento com a atriz Nicole Kidman. Além de saber passar, lavar e cozinhar, calar a boca era pré-requisito básico. O contrato veio à tona após a doméstica Judita Gómez processar Cruise e Kidman alegando ter sido injustamente demitida.
Reproduzo abaixo a íntegra do contrato para que o leitor consiga dimensionar o trabalho feito por The Smoking Gun. E também fica o alerta para aqueles que querem começar uma carreira em Hollywood como empregada doméstica de atores famosos.
‘Eu fui contratado pela Odin Productions Inc. para prover serviços para Tom Cruise e sua esposa Nicole Kidman. Eu reconheço que ao executar tais atividades, eu posso vir a receber informações confidenciais, sejam verbais ou escritas, que digam respeito às atividades pessoais ou profissionais de Tom Cruise e Nicole Kidman. Eu reconheço que o Sr. Cruise e a Sra. Kidman são pessoas proeminentes cujas reputações são de sensibilidade particular devido à sua importância como atores de cinema. Eu compreendo que a veiculação de informação confidencial pode causar constrangimento e falsamente machucar a reputação de Cruise, o que causaria dano irreparável. Eu também entendo que essa veiculação irá resultar em invasão da privacidade de Cruise, cuja privacidade reconheço que ele e sua mulher têm o direito de manter.
Eu concordo manter em confidencialidade estrita e não comentar, revelar ou insinuar nenhuma informação que possa ser obtida por mim, sem autorização por escrito de Cruise. Minha intenção única em assinar este acordo é proteger Cruise da divulgação de informações que tendem a machucar, macular, arruinar, estragar ou adversamente afetar quaisquer das atividades deles.
Eu reconheço e concordo que qualquer divulgação ou apropriação indevida de qualquer informação confidencial em violação a este acordo irá causar dano irreparável, cujo alcance será difícil de precisar. Eu concordo que Tom Cruise terá o direito de recorrer a um tribunal de jurisdição competente para uma medida cautelar no sentido de impedir tal divulgação, uso ou apropriação indevida; e para outros fins que podem ser classificados como apropriados, incluindo sem limitações os danos morais, honorários jurídicos e custas do processo.’
O casal alegou que Judita Gómez foi demitida por incompetência, falso testemunho, falta de confiabilidade e violação de correspondência.
Fazem parte ainda dessa galeria de pérolas itens como multas de trânsito do apresentador David Letterman; as custas de um processo perdido por Barbra Streisand; a certidão do casamento de vitrine de Britney Spears em Las Vegas e que foi anulado dias depois; a certidão de nascimento de Bruce Springsteen; uma carta de ‘auto-recomendação’ escrita pelo apresentador da Fox News Bill O´Reilly no início de carreira para um futuro chefe, e várias outras. O arquivo da parte jurídica possui volume considerável. Há disponível uma retrospectiva desde o ano de fundação do sítio, com todos os documentos obtidos expostos para a leitura do internauta – e a subseqüente diversão.
Preferência pessoal
Se, de um lado, na parte jurídica a curiosidade e sordidez do visitante já é estimulada, no lado artístico do sítio mais ainda. The Smoking Gun também publica para o deleite do leitor os contratos que cantores, humoristas e conjuntos musicais enviam para as casas de show com exigências para eles e suas equipes. São mais de 200 artistas e suas respectivas ordens para tal tipo de água e toalhas nos seus camarins.
De uma certa forma, esses ofícios de exigência acabam por revelar mais ou menos qual é a personalidade do artista. Frank Sinatra, por exemplo, fazia questão de ter à disposição pelo menos dois camarins e um escritório de produção, além de quatro linhas telefônicas exclusivas. Uma em cada camarim e duas no escritório. Um otorrinolaringologista também deveria estar presente com medicação a postos, caso necessário. Por fim, o cantor de olhos azuis exigia – claro – uma garrafa de vodka, três de whisky, uma de gim e duas de vinho. Sem mencionar doze embalagens de balas de cereja e doze de balas outros sabores.
Para quem já namorou ao som de ‘Sacrifice’ ou ‘Don’t let the sun go down on me’, as modestas três páginas de exigências feitas pelo cantor britânico Elton John são parada obrigatória. Logo na primeira, em grifo, está a menção de que ‘Elton John não está acostumado a usar credenciais’ – obrigação de todos os mortais da sua equipe, entretanto.
Para que John possa se sentir a vontade, são necessárias no mínimo 50 toalhas de banho e 24 de rosto. Para tornar o clima no camarim mais aconchegante, Sir Elton faz questão de pedir iluminação localizada nas mesas e no chão, além de pelo menos duas tomadas de 120V e uma de 230V. Não há exigências no tocante a bebidas alcoólicas, mas há uma para um arranjo grande de flores coloridas, dentre as quais não devem ser incluídos crisântemos ou margaridas.
Aparentemente, quanto mais novo o artista, maior a quantidade de frescuras. Que o diga a principiante Ashlee Simpson (nada a ver com O.J.). A cantora, irmã da atriz Jessica Simpson, é conhecida basicamente do público adolescente, mas ganhou notoriedade nos Estados Unidos após recente fiasco cometido no programa de humor Saturday Night Live, da rede NBC, que é de fato ao vivo como diz o título. Durante uma apresentação no programa, Ashlee iria dublar uma música, fazendo pressupor que cantaria ao vivo. Ao começar a tocar a música – com sua voz já gravada – a cantora perturbou-se com o som de sua performance e saiu do palco, evidenciando que apenas fingia que cantava.
Na lista de exigências, a artista coloca que são necessárias guitarras, baterias, contrabaixo e seqüências pré-gravadas de suas músicas. Praticamente uma confissão de desrespeito com o público. Além disso, existe uma lista quase quilométrica com outros equipamentos eletrônicos que devem ser fornecidos pelo contratante – sendo que a maioria dos grupos leva seus próprios instrumentos musicais. Fora isso, a dublê de cantora solicita 72 garrafas d’água (que não sejam da marca Evian), 24 latas de refrigerantes e mais 24 de cervejas. E o campeão da lista: um engradado de energético Red Bull. Será que tudo isso é válido para quem apenas dubla?
A mais recente celebridade incluída na vitrine de The Smoking Gun não é artista, mas também é conhecido mundialmente. Lida com a política mundial, mas não é o cantor Bono Vox, do U2. E está bem longe de ser um símbolo sexual para as mulheres. A nova inclusão na lista de exigências atende pelo nome de Dick Cheney, o vice-presidente dos Estados Unidos, tido como real articulador da administração George W. Bush.
O documento contendo instruções oficiais foi obtido por The Smoking Gun junto a um hotel onde Cheney ficaria hospedado. O vice-presidente norte-americano exige quatro latas de Sprite dietético e sem cafeína, seis garrafas d’ água, microondas, cafeteira, temperatura ambiente de 68 graus Fahrenheit, todas as luzes do quarto ligadas – e o que mais chamou atenção: que todos os televisores estejam sintonizados no canal Fox News.
Desde o último dia 23, quando a informação foi divulgada, Cheney vem sofrendo críticas por ter externado tamanha preferência pessoal. Foi na Fox News – e não na CNN – que Dick Cheney deu recentemente entrevista exclusiva sobre o incidente em que baleou um amigo enquanto caçava, depois de uma desmoralizante demora em se manifestar a respeito.
Queijo com abacaxi
Se tomar conhecimento das peculiaridades dos artistas (e políticos) ao prepararem para um show (ou hospedagem) não for suficiente para o leitor, The Smoking Gun ainda tem uma carta na manga. Em outra interessante seção, os visitantes são convidados a ver fotos de artistas famosos durante prisões que sofreram em algum momento de suas vidas.
Por meio de conexões com autoridades policiais, o sítio levantou fotografias da ficha policial de nomes como Nick Nolte, Vince Vaughn, Robert Downey Jr – preso diversas vezes por porte de entorpecente – e o tradicionalíssimo Hugh Grant, que foi flagrado e preso com uma prostituta nas ruas de Los Angeles com ‘a boca na botija’, embora existam argumentos de que tenha sido com ‘a botija na boca’.
O momento ‘diga xis’ de músicos renomados na sua passagem pelo xadrez também marca presença, com destaque para ícones como James Brown, Michael Jackson, Frank Sinatra, Ozzy Osbourne e Axl Rose. Personagens relevantes e históricos tais como Martin Luther King e Bill Gates também tomam parte na irreverente coleção, que tem pelo menos nove categorias. Tanta revelação inesperada e tanto sarcasmo ao mesmo tempo renderam até livro. O editor do sítio, Daniel Green, lançou em 2001 The Smoking Gun: A dossier of secret, surprising and salacious documents.A obra tem 224 páginas que reúnem o melhor apresentado na internet até aquele ano.
O leitor pode se perguntar qual seria a razão para o título The Smoking Gun. A melhor tradução seria ‘arma enfumaçada’, como no momento imediatamente após ter disparado um tiro. Ou seja, a proposta é como um tiro recente, em função do teor restrito do material que se apresenta.
Falando em fumaça, é impossível não mencionar a lista de exigências para apresentações do cantor jamaicano Ziggy Marley – filho do legendário Bob Marley. Ícone do reggae, Marley pai é ainda hoje um dos maiores representantes desse ritmo. Ao longo da sua trajetória de vida, levou a milhões de fãs o ritmo suave do reggae e sua temática de paz, mas também o triste hábito do consumo de drogas entrosado com sua filosofia. E Ziggy segue os passos do pai em ambos os quesitos.
Quem contratar o músico para uma apresentação irá deparar-se com uma exigência de três pizzas grandes de queijo e abacaxi prontas para o consumo quando a entourage chegar ao local do espetáculo. A alegação apresentada é que ‘estamos sempre famintos quando chegamos ao local do show porque provavelmente tenhamos dirigido a noite toda’. Ah, bom. E o leitor já achando que era por causa da ‘larica’…
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Jornalista