Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bissexualidade, a forma e o fundo

Veja é uma revista que lamentavelmente tem se caracterizado pelo conservadorismo e a pouca credibilidade na forma de veiculação das matérias que estampa em suas páginas, não raro primando pelo sensacionalismo (ver artigos a respeito aqui mesmo nesse Observatório). Assim é que a apresentação, em sua edição de 21 de dezembro de 2005, como destaque numa capa de fundo lilás suave e degradé, da chamada para a entrevista intitulada ‘Sou bi. E daí?’, realizada com a cantora e compositora Ana Carolina, não significou nenhuma surpresa com relação à linha editorial que esse periódico tem apresentado ao longo de sua existência. O subtítulo, também constante da capa, afirma que a cantora ‘é ícone de uma geração que não liga para os rótulos sexuais nem faz disso uma bandeira política.’

No interior, cinco páginas mais duas introdutórias apresentam em poucas colunas de texto o tema classificado como especial e ilustrado por 10 fotos em tamanhos generosos – da cantora e de outras personalidades lésbicas, reais ou do mundo da ficção.

Sem adentrar no exame do indiscutível sensacionalismo pelo qual o tema é focado ou mesmo especulações sobre possíveis (de)efeitos decorrentes da edição (copy desk), a matéria assinada por Sérgio Martins é construída a partir da vocalização que a cantora e compositora brasileira faz sobre sua prática sexual dissonante da heteronorma excludente. O jornalista apresenta essa declaração como uma ‘confissão’ que ‘chama atenção’ pela ‘naturalidade’ e ‘leveza’, constituindo-se em ‘reflexo de uma mudança e tanto na forma como os jovens brasileiros encaram a sexualidade’, formulada ‘sem meias palavras’.

Mecanismos de opressão

No mesmo intróito e na seqüência do elogio à ‘naturalidade’ com que a artista aborda esse aspecto de sua vida pessoal, o autor empenha-se expressamente em esvaziar a importância política do processo de reivindicação de uma cidadania plena que sujeitos homossexuais – gueis e lésbicas –, travestis, transgêneros e bissexuais vêm protagonizando no Brasil e no mundo de modo bastante consistente ao longo das últimas três décadas.

A mudança nas mentalidades, que o jornalista afirma presente de maneira generalizada nos jovens atuais, segundo se depreende de seu texto, operou-se como que por um passe de mágica, sem sujeitos. Não foi precedida por qualquer mobilização social e política; nenhuma consciência coletiva por parte de pessoas que, em dados momentos históricos ousaram formular críticas, romper paradigmas, produzir enfrentamentos, desvelar formas sutis de dominação e controle, pagando muitas vezes elevados custos sobre suas vidas pessoais e familiares (‘A última década viu as mudanças culturais em relação à sexualidade se acelerarem de maneira marcante. Isso é perceptível na televisão.’).

A saída de uma posição de meras vítimas, retratadas apenas como que desprovidas de qualquer sentido de moral ou ética, portadoras de personalidade anormal ou psicopática, diuturnamente vinculadas à delinqüência e à pedofilia, protagonizada por pessoas que em função da direção de seu afeto e desejo somente eram vistas – e por conta disso muitas delas se viam a si mesmas – como seres abjetos, tais sujeitos engendram uma atuação política contra a discriminação e a violência de que são alvos, passando a reivindicar isonomia de direitos civis, sociais e previdenciários com os cidadãos heterossexuais, parece não lhe significar absolutamente nada. Na trilha dos movimentos negro e feminista que emergiram nos Estados Unidos, o firme posicionamento contra humilhações, demissão, desemprego, chantagens, espancamentos e todo tipo de violência física e simbólica, algumas letais, desnaturalizando-as, retirando-as da esfera do íntimo, do meramente pessoal e revelando, para desmontar, os mecanismos de opressão embutidos, parece representar coisa alguma, pelo descaso que o jornalista lhe relega.

Significado político

Que a cantora e compositora – segundo a forma pela qual a matéria aparece publicada – demonstre ignorar esse aspecto do processo histórico, compreende-se, ainda que se intitule leitora de Camille Paglia – autora que reconhece expressamente os aspectos de dominação e poder que conformam a sexualidade e a identidade.

Embora teça críticas profundas e contundentes aos aspectos dogmáticos, mitificadores, segregacionistas e normativistas presentes no (em setores do) movimento gay, lésbico feminista e feminista, Camille Paglia reconhece a importância de Stonewall no combate à opressão e os inegáveis ganhos em termos de liberdade naquilo que ela denomina cultura gay pós-Stonewall. Também e principalmente, posiciona-se contra todas as formas de establishment, inclusive o da sexualidade bem-comportada (hetero, homo ou bi).

Ao propor a bissexualidade, Camille Paglia o faz a partir de sua auto-identificação pública de lésbica e buscando uma forma de ‘escapar das animosidades e falsas polaridades da atual guerra dos sexos’, nunca sob uma forma oportunística de quem almeja a redução nos elevados custos de uma identificação pública como lésbica. Sabe que, no momento atual, a identificação com uma prática estigmatizada possui profundo significado político.

Detesto!

Já o autor da matéria da revista Veja, acalmando com sua estratégia de despolitização o público que sabe conservador (‘E, é importante frisar, [a ‘confissão’ da cantora é feita] sem ter a mínima intenção de fazer proselitismo em favor de causas políticas’, pág. 123), na verdade revela o comprometimento com a velha vertente que se mantém ciosa de que tais questões – como outras igualmente desestabilizantes nesse nosso vasto país garroteado por uma tenaz tradição despolitizadora – apenas permaneça na ordem do individual, do ‘íntimo’. E, para garantir ainda maior eficácia ao projeto, apresenta esse discurso como uma concepção atualíssima – da ordem do novo, do pleno de vigor –, em contraponto ao que implicitamente afirma ser uma forma de pensamento ultrapassada – o comprometimento com questões de ordem coletivas, sociais, políticas. Através desse estratagema, busca uma identificação maior com os jovens aos quais parece querer se dirigir (‘Ana Carolina pertence a uma era pós-engajamento’, pág. 125).

Advogar desqualificação e descompromisso diante de reivindicações coletivas e de cunho político, ou uma bissexualidade enquanto atenuante dos custos da prática afetivo-sexual fora dos padrões da heteronormatividade excludente, na verdade são estratagemas tão antigos quanto querer mantê-la circunscrita ao espaço do silenciamento, da simples intimidade pessoal, da negação dos aspectos políticos da sexualidade humana.

Conforme menciona o antropólogo Luiz Mott no seu Lesbianismo no Brasil (Mercado Aberto, 1987, pág. 173), a própria Veja, em 3/10/1973, registra atitude igualmente desqualificadora de quem manifeste consciência sobre as implicações políticas da sexualidade humana, protagonizada pela intérprete Maria Bethânia: ‘Betânia dá gargalhada das emancipacionistas feministas e como um caracol vai-se fechando na casca de uma incomunicabilidade crescente à medida que as perguntas são homossexualismo, sobre assumir-se. Limita-se a sublinhar com um olhar que tem a intensidade relampejante de sua protetora Iansã e diz: ‘Eu não minto para mim mesma. E basta!’ Quando se fala em gaypower, Betânia diz: Detesto! Acho ridículo.’ (Sic.)

Desgrava!

Ainda no mesmo livro (pág. 170), Mott resgata outros comportamentos ambíguos, também produto do peso do estigma, manifestos por ninguém menos do que Ângela Rô Rô, igualmente cantora e compositora, mas que se destacava nos anos oitenta pelos freqüentes envolvimentos em conflitos com supostas parceiras amorosas, fazendo-a freqüentar as páginas policiais dos jornais com certa assiduidade. Segundo esse antropólogo, Ângela teria se declarado bissexual à revista Nova (em edição não-mencionada), ocasião em que se exaspera com a relevância atribuída à sua sexualidade: ‘Porra! As pessoas ficam tão ligadas na minha bissexualidade e há tantas outras coisas muito mais importantes no mundo do que o sexo. (…)’

Ney Matogrosso, outro destacado intérprete da MPB, em entrevista ao extinto jornal Lampião da Esquina (nº 11, abril de 1979, pág. 5) – periódico que foi um dos marcos fundadores do Movimento Homossexual no Brasil –, declarava: ‘O que eu faço na cama só interessa a mim, não tem nada a ver com outras pessoas. O fato de eu ser ou não homossexual é uma coisa que só interessa na medida em que estimula a fantasia das pessoas. Eu acho que é um problema meu.’ (Esse artista, cerca de duas décadas depois, ao não se ver retratado no filme sobre a vida e a carreira do cantor e compositor Cazuza como um de seus namorados, queixa-se à imprensa pela omissão dessa sua participação na vida do cantor homenageado.)

A atriz e diretora teatral Norma Bengell, no mesmo periódico (Lampião da Esquina, nº 3, agosto de 1978, pág. 9), se declara: ‘Uma pessoa liberada sexualmente, porque eu nem falo mais de sexo porque acho uma coisa antiga falar sobre isso… Eu acho que cada um tem o direito de usar sua sexualidade como quiser, e ninguém tem o direito de falar nada.’ Nessa mesma entrevista, Norma afirma ter tido envolvimento com uma mulher. No entanto, segundo o mesmo Mott, o jornal alternativo Repórter, em sua edição nº 14, de fevereiro de 1979, na pág. 10, dá conta de uma violenta reação de La Bengell diante de uma solicitação de entrevista abordando questões sobre homossexualidade feminina. Segundo transcrição do antropólogo, a atriz e diretora teatral teria gritado ‘que não poderia responder a um questionário daquele tipo, pois só uma mulher homossexual poderia fazê-lo e ela não era homossexual’. Ao perceber que sua fala havia sido gravada, ‘levantou-se abruptamente da cadeira onde estava sentada e arrancou violentamente o gravador das mãos do repórter, ordenando: Desgrava! Desgrava agora, na minha frente.’ (Pág. 180).

Persistência do preconceito

Na matéria da Veja, Ana Carolina também vê como ‘antiquada’ a atribuição de coragem à sua decisão de gravar música cuja letra afirma ‘Eu gosto de homens e mulheres’. E completa: ‘Nossas inclinações sexuais não deveriam causar medo’. Entretanto, ao afirmar que pode ‘até estar saindo com uma mulher, mas se’ vier a se ‘apaixonar por um homem e decidir casar com ele na igreja, de véu e grinalda, ninguém vai impedir’, apenas revela a persistência da força do estigma e o posicionamento utilitarista de quem não quer pagar o preço.

Quisesse a jovem artista da Música Popular Brasileira manter-se fiel às duas figuras que tributa filiação (Cássia Eller e Camille Paglia), certamente sua frase apresentaria construção exatamente oposta. Pois, afinal, segundo as palavras da própria Camille, ‘o autoquestionamento é crucial’! Além do mais, é imperioso que se ‘esteja pronto a pagar o preço’!

Referindo-se o tempo todo aos ‘jovens’, o jornalista Sérgio Martins constrói sobre eles em sua matéria uma imagem universalizante, como se todos fossem dotados de um único modo de agir e pensar. Também uma das características mais marcantes da juventude – a abertura às experimentações – é apresentada pelo autor como um traço tornado marcante apenas recentemente (pág. 127).

Generalizando atitudes e concepções de parcelas da juventude (marcadamente branca, média e urbana) que lidam melhor com os impulsos do desejo erótico e afetivo, não se sentindo obrigadas a construírem para si uma identidade social baseada em práticas afetivo-sexuais binárias e excludentes, a matéria apenas muito de passagem faz menção à persistência do preconceito, presente também na realidade de grandes setores da juventude, a se manifestar tanto no ambiente social quanto no familiar.

Fantasia compulsória

Lado a lado com essa concepção despolitizadora e individualista, o jornalista apresenta uma imagem supostamente idílica e uniforme projetada sobre toda uma geração, desconsiderando variáveis como classe, posição e origem. Nenhuma palavra sobre a marcante intolerância que ainda se verifica no âmbito das instituições escolares, as formas cruéis e destrutivas com que muitos jovens são tratados, caso manifestem comportamento que possa ser percebido como de algum modo desviante da representação consagrada daquilo que deva ser a heterossexualidade, situação que se agrava diante da inabilidade e o despreparo com que profissionais da educação lidam com esses fatos. Nenhuma menção à escassez de registros sobre suicídios e violência familiar com base na homofobia; nada sobre a angústia que ainda representa para um número bastante expressivo de jovens qualquer suspeita de desvio da heteronormatividade.

A imagem suposta construída em sua matéria, de que a atual geração de moços e moças estaria se expressando sexual e afetivamente de forma libertária, na verdade traz embutido o freio do conservadorismo, que treme de pavor diante de qualquer possibilidade verdadeiramente desestabilizadora do modelo normatizado. Não à toa a frase pinçada do economista Roberto Campos e escolhida para encerrar a matéria – a peremptória advertência contra uma homossexualidade que se pretenderia obrigatória.

Uma sociedade democrática, respeitosa para com as liberdades pessoais, onde seus habitantes tivessem a segurança de estarem a salvo de processos de desqualificação social e mesmo de violência física fundados no modo pelo qual expressam seus desejos de afeto e sexo, não teria por que imaginar uma fantasiosa homossexualidade compulsória como a que alguns setores ainda insistem em defender para a heterossexualidade.

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Pesquisadora