Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bodas de uma matéria que nunca saiu

Nestes tempos em que o papel da mídia brasileira está sendo tão discutido, um certo ‘revisionismo’ talvez seja interessante. No final de semana que passou, completaram-se cinco anos de um fato que marcou a minha vida – e a minha (ex-)carreira de jornalista profissional. Cinco anos, dizem por aí, são as bodas de madeira ou de ferro.

No dia 3 de fevereiro de 2002, a Folha de S.Paulo publicou o texto ‘Fundos do Deutsche investem na Eucatex‘, segundo o qual, dizia o lide, ‘três fundos constituídos pelo Deutsche Bank detêm 36% das ações ordinárias e 29% das ações preferenciais da Eucatex S.A. Indústria e Comércio, empresa da família de Paulo Maluf’.

A matéria, por uma decisão superior, não cita as suspeitas, na época, sobre recursos depositados na ilha de Jersey cujos beneficiários seriam Maluf e sua família. Talvez por isso, o ombudsman da Folha, em sua crítica interna, no dia 4, tenha dito o seguinte:

‘Jersey, Deutsche, Eucatex

Interessante reportagem (`Fundos do Deutsche investem na Eucatex´, Dinheiro, pág. B7) revela aspecto até aqui pouco conhecido da composição societária dessa empresa do ex-prefeito Paulo Maluf e sua família. Mostra-se, inclusive, que esse investimento envolveu a agência do banco em Jersey e ocorreu em 97. Qualquer leitor que esteja seguindo com atenção o caso Jersey (contas de Maluf no exterior) tem o direito de se perguntar se essa reportagem não está relacionada com a de 16 de dezembro passado (destacada por mim em crítica interna no dia seguinte), sobre operações de um `trust´ de Jersey no Brasil, e com o próprio caso Jersey de modo geral, que envolve o Deutsche Bank. Por esse motivo, não dá para entender por que o jornal, neste texto, não faz a relação entre as duas questões, nem que seja para mostrar, se for o caso, que uma coisa não tem nada a ver com a outra. O leitor tem o direito de ser claramente informado, certo?’

A denúncia contra Maluf

No dia 18 de dezembro de 2006, o site da Procuradoria da República em São Paulo publicou a seguinte nota:

MPF-SP denuncia Maluf e mais dez por lavagem de dinheiro e quadrilha

O Ministério Público Federal de São Paulo denunciou hoje à 2ª Vara Criminal Federal, especializada em crimes financeiros, o deputado federal eleito Paulo Maluf e mais dez pessoas pela montagem de um internacional e complexo esquema de formação de quadrilha com o objetivo de lavar dinheiro oriundo de corrupção.

Segundo a denúncia, parte do dinheiro de corrupção proveniente das obras da avenida Águas Espraiadas, na zona sul de São Paulo, realizada na última gestão de Maluf na prefeitura (1993-1996), foi para a conta Chanani, em Nova Iorque, e de lá para quatro contas no paraíso fiscal de Jersey, no Reino Unido, de onde migraram para sete fundos de investimento na mesma ilha. O dinheiro depois foi investido na Eucatex, empresa da família do ex-prefeito.

Além de Maluf, o procurador da República Rodrigo de Grandis denunciou os seguintes integrantes da família do ex-prefeito: sua mulher, Sylvia Lutfalla Maluf; os quatro filhos do casal, Flávio, Ligia, Lina e Otávio; a mulher de Flávio, Jacqueline Coutinho Maluf; e o marido de Ligia, Maurílio Miguel Maurílio Curi.

A denúncia também atinge um preposto de Maluf em Jersey, o jordaniano naturalizado suíço Hani B. Kalouti, acusado de ser um dos responsáveis pela montagem do esquema, e o casal de doleiros Roger Clement Haber e Myrian Haber, acusados pelos crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas. O casal é apontado pelo MPF como autor das transferências de valores do Brasil para os EUA e a Europa.

A denúncia foi oferecida diretamente à 2ª Vara Criminal Federal, pois os fatos nela mencionados têm relação com o processo pelos crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha, contra Maluf, Flavio, Vivaldo Alves e Simeão Damasceno, em virtude da transferência de dinheiro de corrupção no Brasil para a conta Chanani. Foi neste processo que Maluf e Flavio foram presos por 40 dias no ano passado, acusados de tentar coagir o réu Alves. A prisão foi mantida em instâncias superiores até o Supremo Tribunal Federal revertê-la.

A nova denúncia é resultado de cooperação jurídica internacional estabelecida diretamente entre o Ministério Público Federal em São Paulo e autoridades da Suíça, Inglaterra e Jersey (uma ilha localizada no canal da Mancha, entre a Grã-Bretanha e a França, que possui autonomia financeira e jurídica, mas que pertence ao Reino Unido). Desde 2002, o MPF e o Ministério Público Estadual (responsável pelas ações cíveis relativas ao caso) tentavam obter documentos nesses países, que chegaram ao Brasil em meados desse ano.

Entre os documentos obtidos, encontram-se apontamentos de um advogado com detalhes sobre uma reunião realizada em março de 1997 no hotel Plaza Athenée, em Paris, entre Maluf, advogados e executivos do Deutsche Bank, na qual foi tratada a criação dos fundos de investimento, na qual Maluf recomenda ‘investimentos discretos’.

Mascarado em recursos dos fundos, o dinheiro saía do paraíso fiscal para a aquisição de debêntures (título de crédito ao portador), posteriormente convertidos em ações da Eucatex. ‘Maluf simuladamente investia na Eucatex e, assim, reutilizava o dinheiro (obtido com a operação de lavagem) na empresa’, afirma o procurador.

Maluf será diplomado amanhã (dia 19) deputado federal pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e a partir de então gozará de foro privilegiado e todos os processos contra ele passarão a tramitar no Supremo Tribunal Federal. Atualmente, na Justiça Federal de São Paulo, Maluf responde a três processos.

A história fica para depois

Talvez eu tenha participado de um dos raros casos em que uma investigação jornalística – foram seis meses de trabalho ‘voluntário’, em casa – tenha se transformado em procedimento judicial. Lembro-me das palavras de Octavio Frias de Oliveira, publisher da Folha, ao final de uma reunião da qual participaram também Eleonora de Lucena, então editora-executiva da Folha, Flávio Maluf, presidente da Eucatex, e Ricardo Tosto, advogado da família Maluf. ‘É deste tipo de reportagem de que o jornal precisa’, disse ‘seu’ Frias – que, infelizmente, não a publicou.

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Funcionário da Folha entre 1990 e 2002, ex-jornalista, Brasília, DF