Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bolívia, esquecida e mal noticiada

No dia 24 de novembro, os artigos da nova Constituição boliviana foram aprovados, em primeira instância, sem a presença dos parlamentares da oposição. Os deputados que constituem a base de apoio do governo Evo Morales acataram o texto em um quartel militar na cidade de Sucre, capital constitucional boliviana, localizada no departamento (estado) de Chuquisaca. A medida fez estourar uma onda de violência na cidade. Quatro pessoas morreram e centenas ficaram feridas.

Dois dias depois, os principais veículos de comunicação do Brasil arriscavam explicações para a instabilidade no país boliviano. A ausência da oposição – com base, principalmente, na região da Meia-Lua, formada pelos departamentos de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija – na votação da Carta e a desconsideração, no texto, da capitalidade plena de Sucre – a cidade pleiteia, desde o final do século 19, a retomada dos poderes Executivo e Legislativo, perdidos para La Paz – figuravam como as principais causas. A maioria das análises concluía que os bolivianos protestavam porque temiam uma nova ditadura ‘boli-venezuelana’.

Não há dúvidas de que são agravantes consideráveis, porém minúsculas, diante do fator central da problemática boliviana: as autonomias departamentais propostas pelos departamentos da Meia-Lua, liderados por Santa Cruz, departamento mais rico do país.

Totalitário e centralista

A redistribuição de verbas na Bolívia é o cerne da questão. Atualmente, 100% das rendas fiscais arrecadadas pelos departamentos são encaminhadas ao governo central que, posteriormente, as redistribui entre os nove departamentos bolivianos. As lideranças políticas e populares de Santa Cruz não concordam em receber de volta apenas 30% daquilo que produzem em sua região. Reclamam que o desenvolvimento cruzenho, oriundo do petróleo, do gás e do agronegócio, acaba beneficiando somente os departamentos do Altiplano – a região mais pobre do país, onde se concentra a maioria indígena da população.

Para acabar com esse centralismo, em 2 de julho de 2006 houve um referendo nacional para definir quais departamentos queriam ser autônomos em relação a La Paz. A Meia-Lua votou a favor da mudança. Já o Altiplano, composto pelos departamentos de La Paz, Potosí, Oruro, Cochabamba e Chuquisaca, foi contra. A decisão da consulta popular deve ser incluída na nova Constituição boliviana. Porém, até o momento não há garantias de que as autonomias departamentais serão respeitadas.

O anseio autonomista é um tema polêmico no país. Cruzenhos afirmam que trará desenvolvimento para toda a Bolívia. Grupos opostos entendem a medida como sinônimo de separatismo e acreditam que os departamentos mais pobres do país ficarão ainda mais pobres.

Para Osvaldo Coggiola, professor de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, o que está em jogo é o fator econômico. ‘Santa Cruz e Tarija são os dois departamentos mais ricos em petróleo e gás. No fundo, é uma aspiração dessas regiões de não compartilhar suas rendas fiscais com as outras regiões da Bolívia que não são ricas em hidrocarbonetos.’

Paula Peña, historiadora e diretora do Museu de História da Universidade Autônoma Gabriel René Moreno, de Santa Cruz de la Sierra, diz que o projeto administrativo de Evo Morales é totalitário e, portanto, centralista. Ela explica que a autonomia departamental surge para suprir o autoritarismo, pois pleiteia a descentralização do poder, a possibilidade de os departamentos elegerem as autoridades, de criarem as próprias leis e de administrarem autonomamente os próprios recursos. ‘Vocês têm sorte, não vivem em um país centralista’, disse a historiadora ao comparar a política administrativa da Bolívia com a do Brasil.

Racismo entre cambas e collas

Além das questões políticas e econômicas, o racismo também aparece como um dos responsáveis pela atual instabilidade boliviana. País de maior fronteira com o Brasil – são, ao todo, 3.423 km de extensão –, a Bolívia é composta por múltiplas etnias. O grande entrave ideológico, geográfico e cultural é entre collas e cambas. A população colla, originária da região alta do país, chamada de Ocidente ou Altiplano, é formada majoritariamente por indígenas. A população camba, proveniente da região baixa, conhecida por Oriente ou Meia-Lua, é constituída em boa medida por mestiços e descendentes europeus.

Nas ruas de Santa Cruz de la Sierra, o racismo é escancarado nas pichações dos muros, que instigam à desunião com frases fortes, tais como ‘Guerra ao Collao’ e ‘Autonomía sin collas’. A recepção de collas na cidade, uma espécie de São Paulo da Bolívia, é nitidamente diferente. Na gloriosa Praça 24 de Septiembre, ponto de referência para cruzenhos e estrangeiros, há muitos collas dispostos a contar a sua história de vida. Boa parte reclama da falta de oportunidade na cidade. Dizem que, quando falam de suas origens andinas, são rapidamente dispensados das entrevistas de emprego sem quaisquer explicações.

O cientista político José Luis Andia, da Universidade Autônoma Gabriel René Moreno, diz que existe, sim, muito racismo na Bolívia. ‘Em toda a Bolívia há um forte racismo. E esse racismo faz com que sempre haja uma diferença de ver, inclusive, a política entre um setor da população não indígena e outro indígena.’

Carlos Alejandro Cirbián Barros, historiador e artista plástico, defende a população cruzenha. Ele diz que são processos de configuração, de conquista e de cultura totalmente distintos. ‘Santa Cruz de La Sierra é uma continuidade geográfica que vem da corrente conquistadora do rio Paraguai, do Rio da Prata. Temos muito mais semelhanças com os estados brasileiros fronteiriços, como Mato Grosso, Goiás, Rondônia e Pará, do que com o ocidente da Bolívia.’

Quando a discussão chega aos confins da oposição radical, a diferença se torna ainda mais explícita. O membro fundador da nação camba, Sergio Antelo, não esconde seu desejo separatista. Questionado se se sentia um cidadão boliviano, respondeu: ‘Nós somos cruzenhos e latino-americanos. Somente.’

Corre pela cidade a informação não confirmada de que a nação camba, com o auxílio de milícias ultra-conservadoras, está treinando mais de 10 mil civis. O objetivo, segundo a população local, é o de criar um cenário de instabilidade na Bolívia, seguido de um desejo milenar de conquistar a independência das regiões baixas.

Os problemas bolivianos vão além do óbvio noticiado pela imprensa brasileira e internacional. E estão enganados os que pensam que é um problema apenas isolado.

As conseqüências de uma guerra civil

É possível que a atual conjuntura política leve a Bolívia a uma guerra civil? ‘Sim, existe a possibilidade de que a coisa se resolva finalmente na marra e de modo bastante violento. A Bolívia é um país que tem tradição no assunto, está habituado a pronunciamentos militares, golpes militares e a lutas civis com armamentos.’ Assim analisa o professor e historiador Coggiola. Para ele, ‘a própria existência do país está em jogo’.

Em janeiro de 2007, ao conversar com um comerciante cruzenho chamado Marco Antonio, esta equipe de reportagem tomou conhecimento da gravidade do problema. Ele já apontava para o que viria a acontecer na Bolívia 10 meses mais tarde. ‘Com certeza vai haver um conflito social. É questão de tempo.’ Chamava a atenção o brilho em seus olhos, o desejo de mudança, o ódio ao governo Morales. ‘Se houver guerra civil, com certeza eu lutarei’, dizia.

Darwin Reyes, membro da Federação Universitária Local (FUL) de Santa Cruz, uma das instituições que há décadas luta pela autonomia do departamento, vai mais além: ‘Como cruzenho, não gostaria de nenhuma intervenção militar ou que a Bolívia viesse a se dividir. Mas eu creio que, para esse processo autonomista, que o governo nega, que ganhamos por meio de referendo, lamentavelmente, não há mudança sem sangue. E para realizar a verdadeira mudança, é com arma e sangue.’

Metade do gás consumido nas indústrias do Sudeste e do Sul brasileiro vem do solo boliviano. Além disso, o trânsito entre os dois países é intenso. Procurados, o Ministério das Relações Exteriores e o Consulado Boliviano não quiseram se pronunciar oficialmente. Disseram que seria um erro falar sobre assuntos ainda hipotéticos. Porém, a assessoria de imprensa do Itamaraty informou que, a sete chaves, o Brasil já estuda uma eventual saída pacífica para ambos os países.

‘Uma instabilidade política na Bolívia, além de uma fuga dos bolivianos para Rondônia, Acre e Mato Grosso do Sul, teria um efeito político de colocar o Brasil dentro da Bolívia para estabilizar o país. A intervenção militar brasileira se daria da mesma forma que se deu no Haiti. Certamente, a ONU (Organização das Nações Unidas) apontaria o Brasil como líder dessa força para apaziguar o país’, afirma o jornalista Agnaldo Brito, do Estado de S. Paulo, que esteve cinco vezes na Bolívia, a trabalho, em 2006. ‘A Bolívia pode ser uma bomba relógio para o governo Lula? Pode. Pode e já foi’, conclui.

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Estudantes de Jornalismo, Osasco (os dois primeiros) e São Paulo, SP