Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Brasil em 140 caracteres

Houve um tempo em que as pessoas que sabiam ler, no Brasil, aguardavam com grande interesse a chegada dos folhetins de Paris. Para saberem das novidades.

Tratava-se de crônicas de escritores, um resumo do que havia acontecido num passado imediato, uma, duas, algumas semanas, quando a poeira das incertezas, interesses parciais e paixões exacerbadas já baixara a um nível, como diz o Veríssimo, menos exagerado.

Os jornalistas não sabiam necessariamente escrever, registravam o fato, coletavam as notícias, apuravam, discerniam o que era bombástico, o que poderia vender o jornal, uma dúzia de outras ocupações que justificavam o salário dessa profissão tão mais sofisticada hoje em dia e, no Brasil, tão apática, apatetada, descaracterizada da função, competência e importância que adquiriu. Parece que o jornalista brasileiro jogou tudo isso para o alto.

Então voltemos ao folhetim

Esta entrada de primavera 2010, ficou marcada pelos episódios narrados adiante, mal contados, entretanto, pelos jornalistas, contudo, engolidos pelas pessoas que não sabem ler. Sorte a nossa, há poucas, a maioria sabe e está a salvo, vive e passa bem, no Brasil, pelo menos a contar pela euforia com que se entregam a escolha dos candidatos à presidência. Qualquer um, que vencer as eleições, será em breve rotulado de o maior presidente que já tivemos. Lindo, me falta capacidade de ironia e sarcasmo. Socorro!

Soterrados

Um buraco feito uma vagina artificial foi aberto próximo ao útero da Terra no Chile e a imprensa internacional se encarregou de fazer o acompanhamento obstetra, com ultra- som e exames periféricos, ao redor do relógio, 24 horas por dia. Ao contrário de um parto prematuro, que assusta, neste, nem os cangurus que param a gestação na iminência de risco dos bebês ganharam em retardamento. E tome ultra-som, e tome emoção, famílias no mundo inteiro comovidas. Dentro da barriga da mãe, a cada dia que passava os bebês (uma ninhada) ficavam mais peludinhos e magros. Sobreviveriam?

Agora imaginemos se a imprensa não apontasse todos os seus holofotes sobre os tais mineiros soterrados numa das muitas minas mal administradas do Chile e de outros países. Não haveria a comoção no país, não haveria a comoção internacional com desdobramentos positivos e negativos. A Clínica Literária foi o único veículo no Brasil que registrou a importância da informação extra além da expectativa dramatizada de resgate dos mineiros, antes dos mesmos serem paridos, saudáveis, pesando quilos de alegria, com todos os sinais vitais em pleno funcionamento, prometendo uma vida longeva e repleta de aparições na TV.

Somente após o episódio a imprensa resolveu investigar e publicar fatos laterais, e procurar o pai das crianças.

Nova York não sabe que o Rio está em guerra

Naquela mesma semana dos soterrados, um artigo de primeira página do New York Times, assinado pelo correspondente brasileiro, Alex Barrionuevo, estampava uma linda foto de policiais do batalhão pacificador numa favela do Rio, cada um com crianças no colo, sentados no chão de uma creche comunitária, armados até os dentes, contudo, sorrindo paternalmente. A reportagem destacava o nome de um dos candidatos ligados ao atual governo brasileiro à presidência em plena campanha eleitoral e deixava à vista dos americanos que sabem ler (há muitos americanos que não sabem ler ainda, coitados) que o Brasil vai bem obrigado. Tudo na santa paz.

Nesta mesma semana já havia ocorrido doze arrastões na zona sul do Rio de Janeiro, tiroteios entre quadrilhas de traficantes e a polícia carioca ribombavam mais do que o rebolation na Bahia. Mortes de pessoas incluindo crianças por balas perdidas foram reportadas e comunidades em pânico eram dramaticamente enfocadas em programas de entretenimento nas belas tardes de dia útil no país. Um filme brasileiro de ação estava para ser lançado e pegava carona de Caveirão. As filas nos cinemas prometiam sucesso de bilheteria, aqui. Não necessariamente ainda em Hollywood. Isso viria mais tarde.

Na semana seguinte aquele filme de verdade persistia rodando ao vivo nas favelas e, num dos debatóides dos candidatos à presidência da República, um deles perguntou ao outro sobre a violência urbana e o narcotráfico; disputavam com palavras a vigente eficiência do sistema de segurança do país versus a utopia no próximo governo. No exato momento em que este observador assistia num monitor paralelo um jornal nacional noticiar tiroteios e arrastões no Rio. 

Lula é esquizofrênico – quem diz é o Nobel de Literatura

Um ex-candidato a presidente do Peru, o escritor Vargas Llosa é laureado com o Prêmio Nobel de Literatura e calha de vir ao Brasil. Justamente logo após o seu ex-amigo, ex-inimigo e atual amigo das letras García Márquez lançar uma coletânea de seus discursos com o título Não vim para discursar. Llosa, todavia, veio em nosso pedaço discursar e saiu com essa: ‘Lula é esquizofrênico, acertou internamente no Brasil (deve ter lido o New York Times, pois dá aulas numa universidade nova-iorquina), mas na política externa é um desastre, amigo de monstros tais como Ahmadinejad e Chaves, e viajou para abraçar Raul Castro enquanto morria um dissidente cubano de greve de fome’. Llosa não foi muito prolífico, parou aí. Talvez esteja certo numa coisa, ele não escreve, reescreve. Então que reescreva-se completamente, ou continue publicando belas obras máximas como a Guerra no Fim do Mundo, Conversa na Catedral e outras, e não venha mais para discurso.

A praça é do povo, e do livro

Aconteceram inúmeras outras coisas no Brasil, tudo em segundo plano. Um fato em primeiro plano que não aconteceu e deveria ser notícia foi o presidente abandonar o navio da presidência para tornar-se cabo eleitoral full-time; outro fato que não aconteceu e deveria ser notícia foi o funcionamento do Congresso. Ninguém apareceu para trabalhar, e ninguém parece se importar, nenhum projeto de lei foi discutido ou aprovado, nenhum deputado ou senador ficou sem receber o dízimo confiscado a fórceps de todos nós.

Um fato que aconteceu relacionado ao Brasil, encoberto pela imprensa da geral (apenas noticiado na editoria escondida de um caderno setorial), talvez por pura falta de discernimento, de jornalistas pequenos de plantão, sobre o que é bombástico, foi uma reunião de brasileiros em Nova York: reunião ‘Brazil Day’ de investidores para questionar a apreciação do real e o futuro da economia brasileira. O que foi noticiado é que o ministro Mantega conversou (20 minutos) com o secretário do Tesouro norte-americano, Timothy Geithner.

Em Sete minutos, Irving Wallace desfia toda uma realidade do submundo pornográfico, crimes e bandidagem; em 11 minutos Paulo Coelho desfia a vida de uma prostituta; em 20 minutos Mantega e Geithner desfiam o que acontecerá com os brasileiros, na realidade.

Cansei de ler. Acho que vou espairecer um pouco, passear na Feira do Livro de Porto Alegre que abre nesta sexta-feira e promete muita animação. Leia aqui a briga de foice dos gaúchos que não querem a Feira do Livro numa pracinha cujo banheiro público abriga a prostituição, ladrões, drogas e camelôs, entre os gaúchos que insistem apaixonados na tradição. No sul a Praça não é do povo, é do livro. Talvez porque a vida de todos nós foi feita para acabar escrita.

Nem que seja em 140 caracteres. 

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Jornalista e escritor