Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Briga entre iguais

No jogo das semelhanças e disparidades, há sempre um ponto em comum entre duas extremidades. Os opostos quase nunca se atraem, porém dizer que não são seduzidos pela mesma tendência já é sonhar alto. O conflito de interesses, dada a configuração atual deste mundo que aí está, surge como pressuposto elementar para os embates entre potências particulares, ainda que suas propostas devessem prezar pelo anseio público. O caso da imprensa é clássico, no sentido de haver confusão entre o privado e o popular. As funções de cada instância são corrompidas, infringidas, e o cidadão sofre o ônus de não questionar aquilo que o afronta.

Os noticiários da semana passada (e desta) ficaram repletos de abordagens que não nos diziam respeito. A TV Globo, em seu principal telejornal, deu enfoque privilegiado às denúncias feitas pelo Ministério Público sobre suposto uso ilícito de dinheiro pela Rede Record. É sabido que o bispo da Igreja Universal, Edir Macedo, é o maior acionista da emissora. Há suspeita de que as doações dos fiéis, quantia esta isenta de descontos, foram usadas para financiar a compra de veículos de comunicação. Ou seja, o dinheiro que fora arrecadado por uma instituição sem fins lucrativos financia entidades que visam ao lucro.

Ataque aberto, discórdia particular

A Globo, raposa que é, encarregou-se de cobrir o acontecimento com a pompa dos rivais que se alegram com a desgraça alheia. A Record, principal concorrente, vem em um período longo de ascendência e, mesmo ainda distante, é latente que sua evolução gera preocupações a quem está à frente. O fato de a Record supostamente utilizar financiamento religioso foi o impulso que a Globo queria para externar uma preocupação que é sua, enquanto iniciativa privada. A informação em questão é notícia e deve ser veiculada, mas se o interesse que a movimenta não for público, a credibilidade do que é veiculado cai sensivelmente.

A Record seguiu a mesma linha. Ao se ver acuada, reagiu. Trouxe à tona momentos históricos. O financiamento ilegal recebido pela Globo de uma companhia americana, os conchaves com os governos da ditadura e a manipulação no debate entre Lula e Collor são algumas das situações questionáveis por que passou a emissora carioca. Lançando mão desse dossiê, a Record usou contra a Globo o mesmo recurso: reavivou a corrupção que outrora fizera parte do passado global. Não há mentira no que foi dito pelas duas emissoras. Contestáveis são as inserções que o conflito adquiriu no campo midiático, em seus respectivos canais.

Se algumas práticas da Globo e da Record não estão imunes a suspeitas e as atuações são relevantes a ponto de despertar o interesse público, o jornalismo é a seção de qualquer veículo ligado à comunicação onde todas as informações pertinentes devem ganhar visibilidade. Neste caso, na medida em que as reportagens surgiram em momentos oportunos para ambos, o que se privilegiou foi o ataque aberto, a discórdia particular. Se não é de ordem pública, as pendências devem ser resguardadas ao campo jurídico ou aos acordos mútuos, sem a necessidade de difusão em larga escala. É impertinente duas empresas se conflitarem em praça pública. Isso é espetáculo, não notícia, informação.

Apatia na sociedade não inspira

Pensemos na política. Imagine os partidos, na incumbência de suas funções públicas, confrontando-se em pleno círculo social. Deputados e senadores usando o plenário para alocar melhor esta ou aquela nomenclatura. Siglas políticas barrando projetos que seriam úteis ao país apenas por serem de autoria de rivais. Políticos, no uso de suas atribuições momentâneas, criarem mecanismos para a continuação ininterrupta em cargos municipais, estaduais e federais. É uma prática endêmica, especialmente nos países com menos índices de instrução e consciência, a de convergir as pendências privadas em esfera pública. Eis um grave e lamentável equívoco.

Nota-se que é claro o anacronismo institucional, símbolo da história recente da Rede Record. Ao que parece, a arrecadação da igreja é remetida aos canais comunicativos. Estes, em troca, propagam a idéia de uma das vertentes evangélicas. As Organizações Globo já foram adeptas da mesma prática, porém com elementos distintos em sua estrutura. Ao Ministério Público cabe investigar e denunciar as ilicitudes que tomam conta das heranças sociais, ilegalidades que necessitam ser julgadas pela justiça. É que no Brasil – mas não só aqui – a confiabilidade nos organismos competentes é baixa. Talvez porque a apatia presente na sociedade não inspire muito.

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Jornalista e professor interino do curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso, Alto Araguaia, MT