Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bush desmascara grande mídia

A grande mídia joga com a sorte e a arrogância. Perde o pé da realidade quando o seu mecanicismo falha e, conseqüentemente, aposta na força, no discurso da esperança. A prova é a crise norte-americana, que ressuscita Keynes pela mão de W. Bush e desmascara o pensamento mecanicista neoliberal midiático.

O Estado de S.Paulo, no final do editorial de sábado (19/01), ‘O pacote de Bush’, conclui que não sabe concluir e destaca que a força e a pujança da economia mais poderosa do planeta darão a volta por cima dos acontecimentos, desmentindo os analistas de curto prazo, os praticantes do chutômetro econométrico. É engraçado. As páginas, os sons e o visual da grande mídia ficam cheios das previsões dos analistas de curto prazo, mas quando as teorias se tornam insuficientes, levando-os ao catastrofismo, ela recorre ao pai-de-santo, apostando na força do capitalismo, no qual vê como dado absoluto da história natural, e não como fenômeno histórico-social, como disse Marx.

Onde está arrogância? É dizer, por exemplo, como diz o Estadão, que a crise vai afetar o risco dos emergentes. Mas, quem está em risco? Não são os Estados Unidos? Por que o mecanicismo? Pingou lá, suja aqui? E a política? Os homens não são animais políticos? Ou vão aceitar os sacrifícios sem se organizarem politicamente para se defender? Certamente, a redução das atividades econômicas nos Estados Unidos inibirá investidores que jogam aqui capital para exportar mercadorias para o mercado norte-americano. Essa é a jogada do capitalismo, desde a divisão internacional do trabalho, no pós-guerra, quando os Estados Unidos se destacaram com o dólar forte para gerar receita aos países em dificuldades, por meio das importações. Os déficits norte-americanos – o consumo – são o contra-pólo dos superávits comerciais dos países capitalistas em geral. Por que se aceitaria que o risco aqui subisse sem antes questionar que as origens do risco não estão aqui, mas lá?

Receita clássica

Verdade pré-estabelecida. Os coleguinhas do Estadão estão obcecados pela verdade absoluta ditada pelos países ricos aos países pobres. Haveria o automatismo com tamanha certeza como o expresso nas brilhantes páginas do grande jornal brasileiro? Ou essa postura é mera subordinação às verdades construídas em laboratório, com a ajuda do mecanicismo econométrico, tão ao gosto dos cultores do princípio único? Hegel disse que a matemática é uma ciência que se realiza no exterior da realidade, não podendo, pois, determiná-la. É um objeto, não sujeito. O pensamento midiático dá de barato o contrário, negando a realidade dialética para satisfazer-se nas limitações da visão mecânica, conveniente, mas não suficiente.

Na prática, a grande mídia tem medo de encarar a realidade. Ora, o que se está vendo é uma tentativa repetitiva de o governo norte-americano cumprir o que a grande mídia brasileira sempre negou para o Brasil – porque cuida de absorver o que é bom não para a economia nacional, mas para a norte-americana. Essencialmente, a solução para os Estados Unidos, se forem seguidos os conselhos neoliberais que o pensamento midiático dissemina abundantemente para os países pobres endividados encalacrados, seria cortar os gastos públicos e subir a taxa de juros para evitar a inflação. Seria.

Não é essa a receita clássica disposta nos manuais de economia criados no país de Tio Sam, espalhados para todos e divulgados sofregamente pelo pensamento midiático, como se o mundo fosse homogêneo?

Ideologia bancocrática

No entanto, o presidente W. Bush, para grande alívio da grande imprensa, faz, justamente, o contrário. Encharca a economia de mais dólares e reduz a taxa de juro! O que se julga bom para o Brasil, de acordo com o pensamento midiático tupiniquim, seria bom para os Estados Unidos?

O governo norte-americano joga no lixo, solenemente, as teorias mecanicistas que fazem a cabeça dos jornalistas de economia, dominados pelo pensamento segundo o qual toda a oferta gera demanda correspondente, levando o sistema capitalista a um eterno equilíbrio dinâmico, como destacou Jean Baptiste Say, avô dos liberais e bisavô dos neoliberais.

Papo furado. Não há equilíbrio. A natureza é dialética, dualidade interativa reagente, positivo-negativo, singular-plural, masculino-feminino etc. Os dois lados interagem e se negam. ‘A verdade é a negatividade’ (Hegel). Por que ter medo do negativo quando ele nasce junto como o positivo e nele se desenvolve e vice-versa? A dialética é o azimute da burguesia, disse Marx.

Acostumados – acostumados, não, obrigados – a cultuar a mentira, pois buscam apenas o lado positivo do capitalismo, enquanto escondem o lado negativo, oculto, porém, latente – jornalistas e comentaristas, salvo honrosas exceções, são seres parciais, se encalacram. Viram papagaio de ideologia bancocrática que W. Bush, em nome da salvação da bancocracia, desmente.

Coquetel para guerras

Se Lula estivesse fazendo o que W. Bush faz em um contexto como o dos Estados Unidos, que registram um déficit fiscal e um déficit comercial de perto de 2 trilhões de dólares, acompanhados por uma inflação ascendente, com as famílias superendividadas e os cartões de crédito estourados em proporção seis vezes superiores ao PIB norte-americano, o que diriam os editoriais e os comentaristas? Cortes, cortes, cortes. O que diz W. Bush, em nome da salvação do capitalismo? Gastos, gastos, gastos.

A ressurreição de Keynes está em plena marcha, mas com pé no freio. W. Bush segue o conselho que Keynes deu a Roosevelt: ‘Penso ser incompatível com a democracia capitalista que o governo eleve seus gastos na escala necessária para fazer valer minha tese – a do pleno emprego – exceto em condições de guerra. Se os Estados Unidos se insensibilizarem para a elevação dos gastos, aprenderão a conhecer sua força’ (A crise da ideologia keynesiana, Lauro Campos, 1980, Campus).

O que fez W. Bush ao longo da semana? Acompanhou o pensamento midiático que dita, por meio da grande mídia, para os pobres? Não. Aumentou os gastos e ampliou a guerra, vendendo mais armas para os árabes, a fim de dividi-los em relação ao Irã, buscando obter união da Arábia Saudita e Israel. Coquetel para muitas guerras, muitos gastos governamentais, muito poder bélico e espacial, graças à economia de guerra.

Jogada eleitoreira e populista

W. Bush não brinca em serviço diante das leis maiores do capital. Os neoliberais brincam de economia. Pensam que estão ainda no mundo pré-1929, de predomínio do livre mercado, quando os oligopólios é que davam as cartas. Keynes sabia que eram ingênuos. O gênio econômico inglês percebeu que a produção e o consumo somente se equilibram se o governo entrar bombando a demanda global via moeda estatal inconversível. Com uma mão, joga moeda na economia, com a outra joga títulos da dívida pública para enxugar parte da base monetária, a fim de evitar enchente inflacionária.

O que a grande mídia tem dificuldade de entender é o caráter dinâmico da dívida pública como instrumento de combate à inflação. Ela cresce, dialeticamente, no lugar da inflação, como destaca Lauro Campos. Tem gente doida, como o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, que pontifica como conselheiro-geral aos domingos no Estadão, que prega a extinção da dívida pública como fator de equilíbrio dinâmico do capitalismo. A inflação cresceria exponencialmente sem ela. São os males do pensamento mecanicista que domina como praga as redações.

Estão certos os neoliberais da grande mídia, ou W. Bush comete equívoco quando tenta salvar o capitalismo empurrando pra frente o consumo para destruir a produção, distribuindo, agora, Bolsa Família aos norte-americanos?

Faltou os luminares editorialistas, tão ciosos do populismo político, destacarem que a jogada de Bush é igualmente eleitoreira, assistencialista e populista. Proporcionalmente, colocar 150 bilhões de dólares, na economia norte-americana para impulsionar o consumo interno é o mesmo que colocar R$ 40 bilhões, arrecadados da extinta CPMF, em programas sociais, como faz Lula. Tudo para permitir que a produção se realize no consumo.

‘Não chores por mim, EUA’

Sem consumo interno, os estoques sobem e precisam ser exportados mediante desvalorização cambial que gera pressão inflacionária. Assim, a dívida pública interna e o consumo interno são uma unidade a serviço do capital, os motores que se completam, para, a despeito do pensamento midiático neoliberal, continuar fazendo valer, mal e porcamente, a tese keynesiana que domina o sistema capitalista mundial até hoje, com variações aqui e ali diferenciadas, mas sem fugir ao essencial, ou seja, à tese de Keynes: a inflação é o elixir que dinamiza a produção, já que o seu oposto, a deflação, é o pior inimigo do capital.

O problema é que a inflação tem que ficar encoberta pela dívida pública. O jogo funciona até extinguir a capacidade dos governos se endividarem. O mecanismo que bombeia a inflação e faz crescer a dívida como instrumento antiinflacionário deixa de funcionar quando o mercado financeiro desconfia da saúde do cliente.

É o que ocorre com a economia dos Estados Unidos. Por isso, os sinais estão trocados: inflação em alta e consumo em baixa. Uma contradição em termos. A inflação ocorre justamente para aquecer o consumo, aumentando o PIB global. Ela é aliviada pelos títulos da dívida pública que enxugam a liquidez em excesso. Caso contrário, explode tudo e emerge a deflação.

Se quem financia o negócio, as pessoas e os governos, através dos bancos, desconfia do cliente, por que continuar comprando os títulos? Assim, o keynesianismo, que chegou ao fim para os pobres na década de 1980, alcançou, em 2008, os seus limites, também nos Estados Unidos. É o que destacou Paul Krugman, em ‘Não chores por mim, Estados Unidos’, no Globo, sábado, (19/01).

Capacidade de endividamento

As crises capitalistas, segundo Marx, ao contrário do que pensa a cabeça mecanicista, iniciam-se nos países capitalistas cêntricos, graças à crescente acumulação de capital. A partir daí, como ensina o autor de O Capital, é preciso olhar o desenvolvimento do capitalismo com o olho do capital. Do centro para a periferia, e não o contrário, como faz a grande mídia, como se a periferia fosse intrinsecamente problemática, necessitando dos conselhos de fora para dentro.

A partir de determinado momento, o capital sobre-acumulado no centro é exportado para a periferia. Chega arrombando, como mostra a história. Num primeiro momento, aquece a produção. Num segundo instante, no entanto, como concentra renda, gera crônica insuficiência relativa de consumo. Os juros sobem diante das incertezas, que se traduzem na impossibilidade de a produção se realizar no consumo. As exportações são a saída que exige desvalorização cambial, que pressiona a inflação etc. Evidentemente, como destaca Marx, é no comércio internacional – no espírito absoluto, as partes reunidas no todo, como diria Hegel – que explodem as contradições gerais.

Os Estados Unidos, em face de mais uma violenta crise de consumo, fazem o que recomendou Keynes: jogam dinheiro no mercado e aliviam o bolso do consumidor no pagamento de impostos para garantir a onda consumista que, se aquecida, faz a roda continuar girando. Heresia para a imprensa neoliberal perdida. O limite é a capacidade de endividamento. Por isso, os editorialistas deixam para o Espírito Santo resolver o problema. Evitam mergulhar na contradição em que se mete, de forma cada vez mais complexa, o sistema.

Ineficiência é o antídoto

O Bolsa Família gigante de Bush, que alivia, um pouquinho só, o bolso da classe média endividada e caminhando para perigosa pobreza relativa, se a vaca for pro brejo, é isso aí, é aquilo que a grande mídia sempre desdenhou, a distribuição da renda para sustentar o consumo interno, já que suas preocupações se fizeram somente no campo da produção. Para ela, a situação se resolve sempre com mais investimentos na produção, como se apenas eles fossem suficiente para sancionar o consumo, de acordo com a furada Lei de Say.

A falta da visão marxista, para dar equilíbrio aos comentários na grande mídia, prejudica os coleguinhas. Marx ironizou Say, destacando que tudo poderia ser equilibrado se as mercadorias que vão para o consumo fossem vendidas sem lucro. Gastou 100, comprando matérias-primas e mão-de-obra para produzir, vende por 100. Quem topa pagar para trabalhar?

O lucro se faz mediante concentração de capital, que desbalança o equilíbrio entre produção e consumo, gerando a insuficiência crônica de demanda global. Os gastos do governo, como ressaltou Malthus, são a forma da ineficiência corrigir a eficiência. A excessiva eficiência privada, impulsionada pela ciência e a tecnologia – que elevam, exponencialmente, a produtividade – tende a jogar os preços no chão, no ambiente da crônica insuficiência de consumo decorrente da acumulação natural do sistema. A ineficiência estatal, dialeticamente, é o antídoto.

Anorexia levaria à morte

Keynes abandonou seu guru, equilibrista-marginalista, Alfred Marshal, quando percebeu, depois da primeira guerra mundial, que Malthus estava certo. A guerra, embora matasse muita gente, criava demanda suficiente ao setor privado. Passou, então, a defender Bettham, pregador dos investimentos nas ‘Agenda’ realizados pelo governo.

Querer que o governo capitalista seja eficiente, moral e ético, como prega o falso moralismo midiático, é jogar o capitalismo na crise permanente de realização, é desconhecer o capitalismo. Pergunte ao Bush, agora, se ele está pensando em dar eficiência aos gastos do governo, quando emite dólares e reduz os juros para salvar as empresas, os bancos e os consumidores da bancarrota.

Os programas sociais são fundamentais para manter a produção se realizando no consumo. Do contrário, é a recessão, o desemprego, a ditadura, porque somente com os militares armados nas ruas seria possível conter a leva de desempregados explodindo tudo nos grandes centros.

É inflacionário, é deficitário, é ineficiente, é improdutivo, é populismo etc. e tal? É tudo isso, mas, fazer o quê? A corcunda do bicho cresceu, deformou-o. Seria o caso de cortar a corcunda, para tornar o perfil do sistema mais bonito, elegante, menos adiposo, esbelto, como determina a estética predominante no mundo da aparência? A anorexia levaria à morte. Bush não está a fim de emagrecer demais.

Apenas falsa ideologia

Quando a insuficiência consumista, por conta da iliquidez dos cartões de crédito, emerge inexoravelmente, produzindo estoques que precisarão ser destruídos se não forem consumidos, tanto democratas quanto republicanos não querem nem saber. Se unem.

O capitalismo norte-americano está obeso? Está. Mas, quem vai cortar a gordura? Os democratas? Os republicanos? Ambos se jogam nos braços do receituário keynesiano, sem perceberem que Keynes passou a ser solução, apenas, parcial, como destacou o presidente do Banco Central norte-americano, Ben Bernamke. O capitalismo norte-americano não vive mais sem viagra.

Keynes, como Getúlio Vargas, Peron, Roosevelt, Mussolini, Hitler e Stalin, tão execrados pela grande mídia neoliberal por terem colocado as finanças públicas a serviço tanto da social-democracia como do socialismo, ressuscitam nas ondas da crise dos subprimes no mercado imobiliário dos Estados Unidos.

E o efeito em escala global?

Certamente, prevalecerá a realpolitik determinada pelo consumo. Se o consumo aquecer mediante a jogada keynesiana-bushiana, tudo bem. Predominará a lei maior do capital, ou seja, a utilidade, o utilitarismo cínico inglês, contribuição anti-ética à formação do caráter humano. ‘Tudo que é útil, é verdadeiro. Se deixa de ser útil, deixa de ser verdade’ (Keynes).

O que fica exposto, claramente, sem que os editoriais da grande mídia destaquem, é que o neoliberalismo, bafejado por ela, deixou de ser útil, tornando-se, conseqüentemente, uma mentira por não ser verdade – apenas falsa ideologia.

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Jornalista, Brasília, DF