Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cabe à mídia desfazer esse novelo

Se os meios de comunicação se interessaram pouco ou quase nada por divulgar dados da pesquisa disponível no Instituto Patrícia Galvão sobre os índices de violência contra a mulher nos estados de Pernambuco e de São Paulo, não foi por acaso. Se os dados da OMS sobre a violência contra a mulher no Japão, a mais alarmante entre os países desenvolvidos – atinge mais da metade da população feminina –, não espantaram as editoras das revistas e cadernos femininos e nem viraram manchetes, também não foi por acaso, mas por linha editorial.

Para nossa mídia especializada em assuntos femininos, a bofetada em si interessa menos do que o pancake para disfarçá-la. É um assunto espinhoso e delicado vincular a vaidade feminina – especialmente num país como o Brasil, repleto de mulheres batalhadoras e pobres que apanham diariamente –, ao alto índice de violência contra mulher. Mas daí a ficarmos presos aos índices, ignorando a patologia das relações sadomasoquistas, já seria ingenuidade. Rever o papel da mídia na banalização do feminismo, que chegou sem gordura, completamente light ao cérebro das leitoras, ouvintes, telespectadoras e internautas, as formadoras de opinião, é direito da mulher e até uma questão de cidadania.

Comparar uma revista Cláudia do início dos anos 1980 a uma revista Cláudia atual é o melhor atestado do desempoderamento interno que sofreram as mulheres. Na década de 1980 os direitos das mulheres eram pautas de matérias e de artigos, os índices de separações saltavam, nascia a nova mulher, que podia trabalhar sem culpa, viver sozinha com os filhos, exigir pensão, casar de novo e demonizar os homens à vontade. Depois disso, ali pelos anos 1990, a nova mulher já era um ser humano bem esquisito, estava pouco se lixando para as causas de seus condicionamentos e nem de longe olhava para as marias do morro com fraternidade.

Hoje, como se fosse questão resolvida, a que foi abortada assim que o mercado se abasteceu com a nova força de trabalho: o assunto é beleza, caça aos machos, como cuidar dos filhos sem ter que conviver com eles e outras idéias marqueteiras, ineficientes e egotistas. A demonização dos homens, entre todas as bandeiras, é a única que flameja, já aparece nas escolinhas de ensino infantil em meninos frágeis ou raivosos e meninas superpoderosas e vaidosas ao extremo. Mas o que isso tem a ver com os índices alarmantes de violência contra a mulher? Tudo, tudo o que ficou para trás quando o feminismo virou a casaca na década de 1990.

Soluções plásticas

Na pesquisa disponível no Instituto Patrícia Galvão surpreende um dado sobre a violência contra a mulher: ela não se reduz aos lares mais pobres, ocorre na classe média e na alta. Caberia à mídia especializada questionar o que basicamente separa a mulher que apanha daquela que não apanha, o homem que bate do que nunca bateu. Há mulheres que nunca apanharam aqui ou no Japão. Elas são encontradas entre profissionais de várias áreas e entre donas-de-casa que nunca trabalharam fora. Há pedreiros que nunca bateram e há médicos, engenheiros, advogados, professores, jornalistas, empresários e bancários que espancam suas mulheres. O terreno é argiloso, engloba subjetividades e certamente não cabe à mídia vitimar ainda mais as mulheres que apanham ou demonizar os homens que batem. Seria mais interessante e produtivo questionar as pautas que dengam as mulheres, fragilizando-as diante de seus próprios corpos, portadores de seios que já não servem para a função biológica, que têm deixado de ser livres, cheios de artérias que causam prazer sexual, mesmo molenguinhos, para se transformarem unicamente em objetos fálicos de provocação do desejo masculino.

Para entendermos melhor a vitimização da mulher, que só aumenta os índices de apanhadoras, seria urgente que as editoras e repórteres que cobrem a área se interessassem um pouco menos por cremes e tinturas, roupas, grifes e fugas do relacionamento humano com o companheiro e os filhos e investissem mais no resgate do corpo feminino, uma fonte de vida e de prazer, capaz de suportar dores das condições femininas, que servem para torná-lo mais forte, que engrandecem o caráter da mulher a ponto de jamais ser violado sem o desejo ou a vontade de sua dona.

Mas quando a mídia violenta o corpo da mulher, banalizando-o como objeto de desejo masculino em primeiro plano, quando denga a mulher perdoando seu medo de viver as dores inerentes dos processos maternos, e aí entram o obstetra e o pediatra; quando em nome da manutenção de um corpo eternamente jovem, a mídia especializada arranja soluções plásticas e hormonais, e aí entram os cirurgiões e os endocrinologistas – então temos a fabricação em série de mulheres fragilizadas, vítimas em potencial, que não sabem ao que vieram nesse mundo além de adorar seu machos e submeterem-se à violência. Fica a impressão de que as nobres editoras e repórteres nunca folhearam um livro de Simone de Beauvoir, nunca ouviram falar de Carmem da Silva, Marina Colasanti e nem ao menos sabem do que se trata coisa menor, como o Complexo de Cinderela, livro digestivo escrito pela americana Collete Dowling, que sozinho já engrossaria o caldo de uma matéria melhorzinha.

O poder do silicone

Não deveriam os meios de comunicação apenas revelar os números e jamais cair no erro de vitimar as mulheres que apanham, deixando-as no lugar de coitadinhas. O sadismo só funciona com o outro lado da gangorra: o masoquismo. A mulher que apanha não precisa só de delegacia da mulher, precisa de informação, precisa compreender seu comportamento masoquista, formado a partir de prazeres genuínos de que ela própria abdicou em troca de prazeres banais, que não a alimentam de fato, não a fortalecem como indivíduo diferenciado do homem. O beicinho, a provocação, a sedução, os chiliques, o lado mau da mulher precisa emergir, do mesmo modo que é preciso resgatar – e a mídia deveria exercer um papel fundamental nisso – os direitos femininos, abortados no meio do caminho da revolução feminista, que começou bem, mas virou uma espécie de fascismo da vaidade.

Falta muito aos meios de comunicação que cobrem o universo feminino, falta divulgação de dados e fatos, mas falta principalmente sair de fora e entrar para dentro do corpo feminino, uma grande fonte de riqueza, amor e poder humanístico. As perdas são talvez irreparáveis e as crianças têm sido as maiores vítimas dessas guerrilhas entre as coitadas e os demônios. A divulgação de dados referentes à violência contra a mulher é apenas um fio da meada, e se os meios de comunicação ficarem presos às conseqüências, sem entrar fundo nas causas e no como eles mesmos fabricaram essa involução, nenhum passo será dado, além da bateção na eterna tecla do homem demonizado, o homem-objeto.

Esse homem que foi produzido midiaticamente para viver ao lado da nova mulher, que não nasceu de fato, pouco resolveu de seu machismo ancestral e nem poderia, mal estava saindo da casca, deu de cara com o poder do silicone, é enfrentado diariamente por deusas turbinadas das capas de revistas, que ele não pode ter porque não tem como pagar. A mulher virou um bem de consumo e, pobre ou rica, está voltada para fora de seu corpo, insatisfeita, subjugada por ela mesma em primeiro lugar. Morreu de vaidade a nova mulher que prometia emergir; está mais ignorante e menos sensível, mais competitiva e menos corajosa.

A sete chaves

Se a dama da sociedade só pensa em plásticas e as realiza, retalhando-se inteira para conseguir mais um upgrade nas armas de sedução, as Marias estão pregadas nas novelas, economizam para comprar creme de aveia barato, se ressentem com o descascado do esmalte de quinta categoria, sonham em não ser elas mesmas, também aviltadas pelas capas que exibem a tez macia das celebridades.

O que sobrou do feminismo além de um certo direito a um empreguinho, uma tripla jornada e um total desentendimento das relações humanas afetuosas foi depurado pela peruíce generalizada das formadoras de opinião, elas próprias preocupadas com creminhos e soluções milagrosas para reter o tempo a fim de não perder as armas que derrubam os peludos neandhertais. Tratado como objeto, castrado em seu poder ancestral de perseguir a fêmea, transformado em caça e presa fácil, o homem menos apto corticalmente e mais primário emocionalmente faz jus ao modelo demonizado. De fato existe, precisa responder por isso judicialmente, mas caberia à mídia dar uma destrinchada básica no papel da mulher nessa história. A submissão, esse masoquismo típico da mulher que abriu mão de lutar pelo direito de ser, anda de mão dadas com o sadismo, mas o sádico machista, em casa ou no trabalho, nos consultórios médicos ou no meio da rua, não encontraria continência na mulher dona do próprio corpo.

Agora, caberia à mídia, que em conluio com a indústria médica e cosmética conseguiu fabricar uma mulher que se dá o direito de não menstruar, não parir, não amamentar, não amadurecer hormonalmente e afetivamente, desfazer esse novelo que trancou a mulher a sete chaves no lugar mais primário da evolução feminina: o da submissão aos homens.

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Jornalista, Osório, RS