Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Canal Livre para o Cabo Anselmo

No último Canal Livre (Rede Bandeirantes, 30/8), o Cabo Anselmo pautou a entrevista. Falou o que quis, como quis e quando quis. Ele não foi o entrevistado. Salvo engano, ocorreram dois impedimentos básicos, que desceram o nível informativo a um ponto muito baixo:

1. A produção do programa deve ter feito um acordo prévio com o advogado de Anselmo, com o próprio e companhias da velha ditadura. Em troca da exclusividade da entrevista, que talvez tenha dado o maior ibope do programa até hoje, Soledad pode ter sido a moeda. Mas o acordo nos bastidores aparece, assim como um ladrão flagrado no furto. Anotei que Fernando Mitre, ao mencionar Soledad, o Cabo Anselmo responde, com as duas mãos levantadas, como quem se defende, como quem faz lembrar um trato, que ameaça ser rompido: ‘Opa!’ E Mitre, de volta: ‘Depois o senhor fala sobre ela.’ E ele, ‘Ah, claro.’ E o que se viu depois foi nada, ou quase nada.

2. No programa da Band, mas não só ali, na verdade com todos os jornalistas que têm entrevistado o Cabo Anselmo, do repórter Octávio Ribeiro, o Pena Branca, até Percival de Souza, todos têm um baixíssimo nível de compreensão da luta clandestina, do movimento socialista e do tipo de agente que é Anselmo. No Canal Livre, ele falou na Olas e passou batido. Referiu-se ao cofre de Adhemar e nem se deram conta do que isso significava. Acusou de modo covarde e impune um político morto, Miguel Arraes, que teria ficado com o dinheiro tomado desse cofre e no estúdio só se ouviu a respiração ofegante dele, Anselmo, a estrela cansada com o seu figurino de 1970.

‘Falou com muita naturalidade’

Nesse Canal Livre, o que poderia ser o grande momento do programa, que desmontaria mais uma farsa do criminoso, apenas foi insinuado, como uma falha do script. Sabe-se, e de experiência eu digo, que ninguém pode ficar muito natural no ar sem que um imprevisto aconteça. Isto se deu quando um dos entrevistadores perguntou ao Cabo Anselmo pelas torturas que sofrera – o que, afinal, justificaria a sua ‘passagem para o outro lado’. Anselmo falou então que foi atirado em uma cela ‘infecta!!!’, infecta, como primeira tortura… Um lance terrível do canastrão. Depois, falou em generalidades sobre o instrumento da tortura e quando tentou descrever o que sofrera, a sua descrição foi exterior, de quem observou torturados. A dor e o inferno não são dele.

A isso observou um jovem muito inteligente, preciso e certeiro:

‘Prestei bem atenção quando perguntaram se ele havia sido torturado. Ele respondeu como havia ficado na hora da tortura, contou como levou choque elétrico e que se encontrava no momento numa sala semi-escura. Contou. Mas eu não vi, não senti nele a voz de uma pessoa que sofreu tamanho sofrimento. Não presenciei na sua voz um sentimento de revolta, um só embargo na voz dele não existiu! Comparo com amigos, quando lembram de brigas no colégio em que sofreram covardia e humilhação e todas as vezes em que contam ficam irados pelo que sofreram. Para uma pessoa que ficou nua, em situação de vexame, que sofreu tamanha humilhação, ele falou com muita naturalidade sobre o assunto!’

Mentira perdeu a verossimilhança

Ao que completou o escritor e jornalista Alípio Freire, em aguda percepção, com a autoridade de quem sofreu a tortura:

‘O senhor Anselmo cometeu uma gafe homérica ao descrever a tortura no pau-de-arara, quando disse que amarravam uma corda nos tornozelos e outra corda nos pulsos. De minha parte, devo dizer que até hoje não soube de nenhum caso em que os tornozelos fossem amarrados. Eles ficavam presos entre os pulsos – estes, sim, amarrados.’

Resultado, à revelia do script: o Cabo Anselmo jamais foi torturado. E por isso e por causa, ele não passou para o outro lado para sobreviver, como uma solução ao desafio proposto por Fleury: ‘Ou colabora ou morre’, como tantas vezes tem repetido. Se bem lembramos, essa versão da passagem se montou quando o dirigente comunista Diógenes de Arruda Câmara o viu a passear no Dops paulista. E fez chegar essa descoberta aos exilados no Chile. Por isso, por falta de pesquisa, interesse ou ignorância, mais de um repórter tem creditado e acreditado que ele passou para o outro lado a partir da sua prisão. Nisso acreditam, sem a percepção aguda de jovens inteligentes ou de poetas ex-presos políticos.

Desde quando comecei a escrever Soledad no Recife, publicado este ano pela Boitempo, que o acompanho em livros, em vídeos, e toda a imprensa. E cada vez mais percebo que o embuste Cabo Anselmo não se adaptou aos novos tempos. Por isso a sua retórica, em sucessivas entrevistas e no Canal Livre, neste 2009, perdeu o vínculo com o real. A sua mentira perdeu a verossimilhança.

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Jornalista e escritor