‘Num dos mais importantes romances do século 20 (ver indicação ao lado), Elias Canetti mostra como um ‘leitor’ pode interpretar qualquer texto apenas da maneira que lhe interessa, por mais claro que possa parecer ao ‘escritor’ ou a um observador isento que o sentido da afirmação é diferente, quando não oposto, ao entendimento que lhe é dado.
Peter Kien, o personagem principal, um homem a quem só interessavam os livros, e sua governanta (depois mulher), Therese, trocam mensagens entre si, mas o significado que cada um dá a cada uma é quase sempre antagônico ao do outro. E reiterar o que foi dito inúmeras vezes não resolve o problema.
O que o gênio do artista intuiu, a ciência agora comprova. Falsas crenças se estabelecem em algumas pessoas e nada as demove delas porque o cérebro humano permite, e no caso de alguns indivíduos até favorece, a ocorrência desse fenômeno, provocado, entre outros fatores, pela ‘amnésia da fonte’.
Estudos recentes na Universidade de Stanford atestam que há uma tendência natural no ser humano para lembrar informações que se conformam com a visão de mundo de cada um e desconsiderar as que se opõem a ela.
Isso ajuda a explicar por que alguns leitores da Folha, com freqüência, deixam de perceber notícias que são dadas com constância e destaque.
Depois de o caso Alstom, por exemplo, ter aparecido diversas vezes na capa do jornal (inclusive uma como manchete) e de a cobertura ter indiscutivelmente melhorado de qualidade, ainda recebo reclamações de quem afirma que a Folha omite, ignora o assunto.
Mas também há situações em que o interlocutor que mostra incapacidade de compreender o que repetidas mensagens afirmam é o jornal. Vou tratar de três situações em que os leitores, a meu ver, estão absolutamente certos, e a Folha não percebe.
Uma é o ‘Painel do Leitor’. A seção, diz o próprio nome, é do leitor.
Mas é comum que seu espaço seja consumido por personagens de notícias ou seus assessores. Seria muito melhor para todos se essas opiniões constassem do noticiário, como ‘outro lado’. Ou que se criasse uma nova seção para abrigá-las. Mas o jornal demonstra preferir continuar impingindo ao leitor, que gasta seu tempo para escrever cartas, a frustração de vê-las omitidas.
Outra queixa recorrente que recebo, para a qual há, em meu juízo, solução simples e insofismável, é contra jornalistas que não se dignam a responder à correspondência recebida.
Aprendi no meu convívio com Octavio Frias de Oliveira, o principal responsável por esta Folha ter se tornado um grande jornal, que o leitor é tão importante, que deve ser tratado como ‘sua excelência’. É ele quem paga o salário de todos os que aqui trabalham. Merece, no mínimo, a cortesia de uma resposta quando se dirige a um de nós. Mas alguns, em especial colunistas, não acham necessário lhe dispensar essa consideração. E o jornal não se mostra disposto a tentar obrigá-los a fazer isso.
O terceiro ponto é o leitor que não mora na grande São Paulo, Distrito Federal e Rio não receber seções a que os residentes nessas três regiões têm direito, como as revistas Morar, Serafina, Lugar, Moda, +Dinheiro e o Guia da Folha/ Livros Discos Filme. Quem vive fora da Grande São Paulo não recebe a Revista da Folha. Mas todos pagam o mesmo preço pelo jornal. Parece-me situação insofismavelmente injusta.
Solicitei a posição oficial da Folha para estes temas. Sobre o ‘Painel do Leitor’, o jornal avalia ‘que instituir um segundo painel de cartas acabaria criando duas categorias de leitores, o que não seria bom’ e que ‘um dos pontos que tornam o ‘Painel do Leitor’ atraente é o fato de, em um espaço democrático e plural, mesclar as opiniões de especialistas e anônimos’.
A respeito dos colunistas que não respondem, o jornal diz que ‘sugere’ que o façam, mas ‘entende que depende da disponibilidade de tempo de cada um’.
Com relação à restrição de circulação de alguns suplementos a algumas regiões, diz que ela se deve ‘a razões editoriais, comerciais e de custos’ e que ‘dependerão do vigor da economia -do poder de compra dos leitores e dos investimentos de anunciantes- mudanças no quadro atual’.
Para mim, a divisão no ‘Painel do Leitor’ entre autoridades e cidadãos comuns já existe, em detrimento destes; todos os jornalistas e colunistas deveriam ser obrigados a responder ao leitor e, exceto por razão editorial, o jornal deveria ser igual em todo o país.’
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‘Para ler’, copyright Folha de S. Paulo, 13/7/08.
‘‘Auto-de-Fé’, de Elias Canetti. Tradução de Herbert Caro. Cosac Naify, 2004 (a partir de R$ 51,70) Entre os muitos temas vitais abordados por esse extraordinário romance, o da virtual impossibilidade da comunicação humana.
PARA VER
‘Uma Leitora Bem Particular’, de Michel Deville, com Miou-Miou, Régis Royer Eric, Christian Ruche, 1988 Sofisticado filme mostra como a linguagem é um campo minado, léxica e textualmente.
‘Meu Adorável Vagabundo’, de Frank Capra, com Gary Cooper e Barbara Stanwyck, 1941 (a partir de R$ 38,50) Reação entusiasmada de leitores a falsa reportagem sobre um vagabundo que quer se matar para salvar o mundo mostra como público pode acreditar apenas no que quer
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