Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Caros Amigos e seus paradoxos

Leyse da Cruz, no artigo ‘A territorialização da homofobia’, publicado na edição virtual da revista Caros Amigos, busca as ‘as reais motivações para a existência da homofobia’. Na capa da edição em papel de julho de 2007 (nº 124), a revista apresentou uma chamada sensacionalista e tendenciosa para um artigo ácido nos termos em que formulava sua crítica à Parada Gay paulistana (‘Parada Gay de SP `é um evento nazista´’).

Os editores Sérgio de Souza e Mylton Severiano poderiam ter pinçado vários outros epítetos utilizados pelo autor, Paulo Nascimento, para representar a sua percepção pessoal do significado daquela manifestação política. Optaram, porém, por destacar o termo ‘nazista’. Foi uma decisão deliberada e consciente de todo o significado simbólico contido nesta palavra. Também bancaram a infração ao princípio norteador da profissão jornalística: garantir o contraditório, ouvindo ambos os lados.

Poderiam ter buscado os organizadores do evento – facílimo, tendo em vista tratar-se de associação civil juridicamente constituída, sediada na mesma cidade na qual a revista tem sede, e contar com página institucional na internet. Preferiram seus editores, contudo, jogar com o sensacionalismo, no melhor estilo Veja. Algo no mínimo estranho para um veículo que conquistou a imagem de seriedade e defesa dos valores democráticos.

Obrigação legal

Na edição seguinte (nº 125, agosto de 2007), Caros Amigos publicou a carta do leitor Dário Neto, que se identifica como ativista GLBTT no movimento estudantil e integrante de um projeto de capacitação de professores para a questão da orientação sexual e das identidades de gênero na mesma São Paulo. Sua inserção, embora observasse o mesmo posicionamento (direita de quem lê) daquela que motivou a mensagem do universitário, se deu quase 20 páginas depois. Treze páginas antes do final do tablóide. Na capa, nenhuma chamada.

Embora Dário esteja se dirigindo aos editores da revista, seu texto foi publicado com o título ‘Resposta a Paulo Nascimento’, sem se fazer acompanhar de qualquer nota explicativa da postura da revista. No sumário, a referência ao texto é feita em termos semelhantes (‘Dário Neto responde a Paulo Nascimento’), propiciando que o conteúdo do debate passasse despercebido pelos leitores, vez que poucos se lembrariam afinal quem era Paulo Nascimento e a respeito do quê era aquela ‘resposta’. Agora, a edição nº 126 (setembro) vai às bancas e a edição virtual surge com o artigo sobre ‘A territorialização da homofobia’.

Após trazer estatísticas de homicídios de ‘gays’ e da estigmatização social de ‘homo’ e ‘transexuais’, Leyse da Cruz indaga sobre ‘as reais motivações’ das atitudes homofóbicas (termo genérico que significa ódio e desprezo a ‘gays’, ‘lésbicas’, ‘travestis’ e ‘transexuais’) que relata. Reflete sobre as atitudes do diretor do São Paulo Futebol Clube que, numa entrevista, acusou um de seus jogadores de ‘gay’; e a do juiz da 9ª Vara Criminal da comarca de São Paulo, que arbitrariamente determinou o arquivamento da ação impetrada pelo jogador objetivando a retratação do dirigente.

Segundo se depreende do relato de Leyse, o magistrado teria violado a obrigação legal à qual sua atividade jurisdicional se encontra subsumida. Ao invés de fundamentar seu decisium em preceitos legais, pautou-se em convicções pessoais, subjetivas.

Tradição nacional

Leyse Cruz então se põe a indagar sobre quais seriam as normatividades postas em xeque com as demandas desses segmentos por reconhecimento social e jurídico; quais estruturas de poder estariam sendo questionadas. Também problematiza qual o conteúdo simbólico de tal designativo (‘gay’), capaz de provocar no jogador a necessidade de reiteradamente ocupar espaços midiáticos para negar essa orientação sexual, como numa busca desesperada por redenção.

Nesse exercício de busca de compreensão dessas dinâmicas desqualificadoras, Leyse nos deixa entrever que elas se organizam sobre algum traço de diferenciação individual. No caso, a orientação do desejo fora da normatividade heterossexual e do paradigma procriativo, e a identidade de gênero erigida sobre valores como prazer, liberdade e felicidade, desvinculada da tradicional concepção do seu aprisionamento à corporeidade sexuada. Nesse percurso, traz um eloqüente painel dos valores que estruturam e dão significado às interações sociais em nosso país. Indaga-nos acerca dos conteúdos representacionais contidos no designativo ‘gay’ e a valoração social de seus significados contrapostas a outras condutas:

‘Esta tenebrosa palavra [‘gay’] é capaz da causar grande impacto, mais que dizer que Renan Calheiros é sonegador de imposto e estar envolvido com lobista ou até mesmo que Paulo Hartung envia 150 policiais ao norte para retirar os quilombolas de suas terras em Linharinho.’

Leyse da Cruz está, assim, a nos conduzir ao ponto axial da questão: quais são os valores que a sociedade brasileira de forma geral define como defensáveis e como opera com eles? Quais as normatividades que as ‘homossexualidades’ e as infrações de gênero questionam? Que estruturação de poder põem sob análise?

A tradição nacional de publicações ditas de esquerda desde o encerramento de O Pasquim não via outro título exibir semelhante ambigüidade. Seria mera nostalgia?

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Mestre em Política Social e graduada em Direito, Rio de Janeiro, RJ