Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta à direção da Folha

[enviada ao ‘Painel do Leitor’ da Folha de S.Paulo, com cópia ao ombudsman e à Direção de Redação, em 15/6/2007]

Como companheiro de luta que fui de Carlos Lamarca na Vanguarda Popular Revolucionária, peço à Folha de S. Paulo que cumpra o dever jornalístico de me dar espaço para expressar o ‘outro lado’ em suas páginas – e não, apenas, no Folha On-Line, de repercussão enormemente inferior, atingindo parcela ínfima do público que leu as reportagens de ontem e o editorial de hoje.

O editorial ‘O Caso Lamarca’ (15/06/2007) já começa errando ao afirmar que, por conta da uma ‘decisão’ da Comissão de Anistia, a viúva de Lamarca terá direito a pensão equivalente ao soldo de general. Na verdade, a decisão final cabe ao ministro da Justiça, que pode acatar ou não a sugestão da Comissão de Anistia (já houve casos em que não a seguiu).

Pior ainda foi a distinção que a Folha propôs entre os militantes que foram torturados e/ou assassinados sob a custódia do Estado e os demais, só reconhecendo aos primeiros o direito à reparação do Estado. De imediato, por não levar em conta que dezenas de militantes foram capturados, levados a centros clandestinos de tortura, supliciados e executados, sem terem sido colocados formalmente sob a custódia do Estado.

E, em termos gerais, tal distinção só caberia se o Brasil não estivesse, no momento dos acontecimentos, submetido à ditadura e ao terrorismo de Estado por parte de um bando armado que usurpou o poder em 1964 e violou de todas as formas os direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros: prendeu ao arrepio da Justiça, torturou, baniu, assassinou, deu sumiço em restos mortais, fechou o Congresso e assumiu suas funções, cassou mandatos legítimos, extinguiu entidades e partidos, cerceou a produção do conhecimento, censurou, permitiu a atuação impune de grupos paramilitares que atentavam contra pessoas e instituições etc.

Os cidadãos brasileiros que ousaram confrontar esse regime totalitário, em condições de enorme desigualdade de forças, nada mais fizeram do que exercer o direito de resistência à tirania, que existe e é reconhecido há tanto tempo quanto a própria democracia, já que também remonta à Grécia antiga. Então, não cabe recriminá-los por assaltar bancos, seqüestrar embaixadores e matar agentes de segurança. Também durante a luta contra o nazi-fascismo foram descarrilados trens, explodidos quartéis, assaltados bancos e mortos policiais e traidores, sem que a ninguém ocorra hoje vituperar os mártires e heróis da Resistência.

Também não é verdade que todos os combatentes da resistência brasileira objetivassem a instalação de uma ditadura socialista no Brasil. Essa generalização provém dos saudosistas da ditadura, como Jarbas Passarinho e Carlos Alberto Brilhante Ustra, na vã tentativa de justificarem o injustificável.

Anda certo o Estado ao reconhecer como vítimas todos aqueles que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da normalidade constitucional em 1964, da qual decorreram todas as atrocidades e horrores dos anos seguintes.

Finalmente, Lamarca, eu e os demais militantes da VPR jamais fizemos opção alguma pelo terrorismo. Não pretendíamos criar o caos e impedir a classe dominante de governar, como os narodniks que caçavam o czar e seus ministros por toda a Rússia, ou, mais recentemente, Bin Laden explodindo torres gêmeas. Nossas ações de propaganda armada visavam engajar a população na luta contra a ditadura. O uso incorreto e malicioso do termo ‘terrorista’ não passou de um ardil goebbeliano dos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas para jogar a população contra os resistentes. Foi propaganda enganosa na época e continua sendo agora, quando é martelado dia e noite pelos porta-vozes da extrema-direita e seus sites obscurantistas.

***

O caso Lamarca

Editorial, copyright Folha de S.Paulo, 15/6/2007

A decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça de conceder a patente de coronel do Exército ao guerrilheiro Carlos Lamarca, morto em 1971 pela repressão, incorre em duplo equívoco. Por conta desse ato, a viúva de Lamarca terá direito a receber pensão mensal equivalente ao soldo de general, além de uma quantia retroativa ao ano de 1988.

O primeiro erro consiste em equiparar a sua morte à de militantes de esquerda torturados e/ou assassinados sob a custódia do Estado, casos em que se justificam as indenizações. Lamarca fez uma opção pela luta armada e pelo terrorismo, com o objetivo de instalar uma ditadura socialista no Brasil. Assaltou bancos, seqüestrou um embaixador e matou agentes de segurança.

A morte em combate -como acabou ocorrendo há quase 36 anos no interior da Bahia- é risco natural para quem escolhe pegar em armas. Por isso o caso de Lamarca não justifica nenhum tipo de ressarcimento da parte de um Estado democrático.

O segundo equívoco cometido pela comissão do Ministério da Justiça foi ter promovido Carlos Lamarca, que deixou o Exército quando era capitão, ao posto de coronel para fins de pagamento de indenização. O pressuposto dessa atitude é que se trata do soldo ao qual ele faria jus se estivesse vivo.

Mas Lamarca foi morto na condição de desertor da corporação. Abandonou a carreira militar, roubando armas e munições de um quartel de Osasco (SP), por iniciativa própria. Não procede, assim, o raciocínio de que a sua carreira tenha sido interrompida por um ato do Estado.

Por tratar-se de um prêmio à deserção, ademais, a equiparação de seus vencimentos ao de um general afronta os princípios de disciplina e subordinação, pilares das Forças Armadas.

******

Jornalista, escritor e ex-preso político, anistiado pelo Ministério da Justiça