VENEZUELA
Rodrigo Martins
Da crítica ao golpe
‘Assessor de Relações Internacionais da Venezuela afirma que a RCTV incitou o povo à insurreição horas antes do golpe de 2002
Ao não renovar a concessão da Rádio Caracas Televisão (RCTV), o presidente Hugo Chávez despertou a ira de setores da sociedade venezualana. Os ecos da pendenga no país vizinho também geraram reações exarcebadas no Brasil e até agora ocupam espaço na agenda política. Na quinta-feira 28, por exemplo, o presidente da RCTV, Marcel Granier, participou de um ato em protesto pela perda do canal, promovido pela revista Imprensa e pela Associação Internacional de Radiodifusão, em São Paulo. Na próxima semana, deve ir a Brasília para falar ao Senado.
O governo venezuelano acusa o ativismo político da RCTV na promoção de um golpe de Estado na Venezuela, em abril de 2002. Granier sustenta que não participou de conspirações para derrubar o presidente, tampouco reconhece a existência do golpe. ‘Houve um vazio de poder, conforme a interpretação do Supremo Tribunal de Justiça’.
Por retaliação à oposição, como sustentam os críticos, ou baseada em critérios legais e técnicos, como o governo venezuelano gosta de enfatizar, a concessão deixou de ser renovada no fim de maio. Em entrevista a CartaCapital, Maximilien Arvelaiz, assessor de Relações Internacionais do presidente Chávez, defende o que entende ser ‘uma decisão legítima e soberana do governo’. A seguir, os principais trechos do diálogo:
CartaCapital: Por que o presidente Chávez não renovou a concessão da RCTV?
Maximilien Arvelaiz: A decisão do governo venezuelano tem fundamentos legais, constitucionais e técnicos. A concessão da RCTV, revista anteriormente em 1987, era válida por 20 anos e não previa renovação automática. A emissora tinha a obrigação de ser um canal de serviço público, mas não cumpria as determinações legais. Exibia conteúdos inadequados em horários reservados para menores de idade, explorava conteúdos violentos e pornográficos, tinha falta de deontologia no trato das informações. Preparamos um dossiê com todas as violações cometidas.
CC: A decisão levou em conta apenas aspectos técnicos?
MA: Também deve-se somar o ativismo político da RCTV no apoio ao golpe de Estado, em abril de 2002, e depois nas greves patronais, com o objetivo de sabotar o presidente. É completamente normal, e muito importante, que exista espaço crítico dentro dos meios de comunicação. Mas uma coisa é ser crítico, outra é promover desestabilização política.
CC: Os proprietários ou diretores da emissora participaram do golpe?
MA: Os meios de comunicação não foram um instrumento para a realização do golpe, como ocorreu no Chile. Eles não participaram do golpe como tal. No entanto, é muito difícil desvincular a ligação entre os poderes político, econômico e midiático. Nas horas prévias do golpe, a RCTV convocou as pessoas a saírem nas ruas. Sempre existiu uma postura muito forte contra o governo e, pouco a pouco, eles ficaram mais hostis. Mas repito: uma coisa é a crítica, outra é conclamar o povo para a insurreição popular.
CC: Isso também não aconteceu com outras emissoras de tevê?
MA: Depois de abril de 2002, o governo negociou com representantes das emissoras de tevê. Logo após o golpe, todos vieram a Chávez para dizer que estavam equivocados sobre o que ocorreu. Depois, seguiram com a mesma postura. Com o término das greves patronais, em janeiro de 2003, houve uma retomada do diálogo. E os empresários disseram: ‘Reconhecemos que Chávez é o presidente. Manteremos as nossas diferenças, mas vamos respeitar as regras constitucionais’. Se você for à Venezuela, poderá ver a diferença. Muitos canais privados mantêm uma crítica muito forte, mas com um certo equilíbrio. A RCTV, no entanto, continuou atuando como um partido político. A Venevísion, de Gustavo Cisneiros, teve um momento em que era muito hostil. Mas, nos últimos dois anos, teve um empenho em tentar normalizar a situação. Nem por isso abandonaram a crítica. Não podem ser identificados como um canal chavista de maneira alguma.
CC: Não seria uma forma de controle sobre a oposição?
MA: Hoje, 80% de todo o espectro eletromagnético, que abriga emissoras de rádio e tevê, continua sendo do setor privado na Venezuela. A oposição fala em tentativa de homogeneizar os meios de comunicação, mas a idéia é falsa. Existe grande diversidade dentro do espectro. O fato é que não tínhamos mais espaço para outra emissora de sinal aberto com cobertura em todo o território nacional. A RCTV não cumpriu uma série de determinações legais. E nós temos a obrigação constitucional de oferecer ao povo um canal nacional de serviço público. Se desejar, a RCTV pode continuar as transmissões por tevê a cabo, por satélite ou pela internet. Mas essa não foi a decisão da emissora. A eles, interressa apresentar-se como vítimas. O importante é que havia fundamentos legais para não renovar a concessão.
CC: Se a RCTV apoiou os golpistas, por que a Justiça não foi acionada?
MA: Na Venezuela, após o golpe de abril de 2002, tivemos um processo para tentar fortalecer as instituições democráticas, que ficaram muito debilitadas. Mas o Supremo Tribunal de Justiça tomou a decisão de que não houve golpe de Estado naquela ocasião, e sim um ‘vazio de poder’. Dois meses depois da tentativa golpista, houve essa decisão, resultado de um acordo com as oligarquias venezuelanas. Cabe ressaltar que a concessão da RCTV foi outorgada pela primeira vez no final dos anos 50, durante a ditadura de Marcos Pérez Jiménez. Depois, ela continuou sendo renovada por meio de acordos firmados com os demais governos e oligarquias.
CC: Apesar o apoio da grande mídia ao golpe, o povo saiu às ruas para defender Hugo Chávez. Como foi possível mobilizar a população?
MA: O exemplo venezuelano mostra as limitações do poder midiático. A imprensa criou uma realidade virtual. Todos os dias, ela dizia: ‘Chávez não é mais popular, temos que derrubá-lo’. Era falso, o povo estava com ele. Começaram a circular informações pela internet, pelo celular, pelos meios alternativos. As rádios comunitárias tiveram participação ativa. Alertavam: ‘Chávez não renunciou, foi um golpe’. As pessoas começaram a se mobilizar. Enquanto a RCTV exibia Tom e Jerry ou telenovelas, o povo saiu às ruas. Isso mostra os limites do poder midiático. Mesmo depois disso, Chávez ganhou as eleições presidenciais tendo contra ele quase todos os meios de comunicação. Foram 7 milhões de votos, 63% de apoio.
CC: Recentemente, o presidente Chávez se irritou com a discussão sobre o caso da RCTV no parlamento brasileiro. Chegou a dizer que havia ‘papagaios do imperialismo’ no Congresso Nacional.
MA: Estamos conscientes que há distinção entre a posição do governo brasileiro e a da Comissão de Relações Internacionais, do Senado. Mas temos que analisar o contexto geral. Existe uma forte ofensiva da direita contra a Venezuela. José María Aznar (premiê espanhol), Vicent Fox (presidente do México), Mario Vargas Llosa (escritor peruano). Há uma aliança mundial da direita contra o presidente Chávez. Querem colocar em dúvida a natureza democrática do nosso governo. Exemplos de não renovação de canais existem muitos. Na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos. Podemos até discutir, mas essa é uma decisão normal para a competência de um Estado. Há estudantes de universidades privadas, que saem nas ruas de Caracas para falar de liberdade de imprensa. Tudo com o objetivo de contestar a natureza democrática do nosso governo.
CC: E parte do Senado brasileiro engrossa o coro.
MA: Sim. O parlamento brasileiro, o senado americano, alguma personalidade pelo mundo… Mas, como disse o presidente Lula, essa é uma questão da Venezuela. Ponto final. Dá tristeza ver setores brasileiros se somarem a uma agenda de oposição ao governo venezuelano, mas isso ocorre no mundo todo. Recentemente, Baltazar Garçon (juiz espanhol) escreveu um relatório sobre Guantánamo, em que critica Bush. De repente, ele coloca no mesmo nível Guantánamo e o caso da RCTV. Como dá para comparar crimes de guerra com a não renovação de um canal de tevê? Há cerca de dez anos, Garçon estava contra Pinochet. Então, tudo é simplificado. Garçon era contra Pinochet, agora é contra Chávez. Logo, Chávez é igual a Pinochet. Ainda bem que o povo venezuelano não caiu nessas armadilhas. Mas a oposição precisa do oxigênio que vem do exterior.
CC: O governo venezuelano recebeu algum convite para participar de debates no parlamento brasileiro sobre o tema?
MA: Até esse momento, não. O que nos chama a atenção é que chamaram o presidente da RCTV, Marcel Granier, e sequer acionaram o nosso embaixador no Brasil. Não entendo por que todos estão tão preocupados com esse tema, se há tantas coisas acontecendo aqui e no resto do mundo.
CC: Quando a mídia atua como partido político, qual é o papel do Estado?
MA: Durante anos, os meios de comunicação eram vistos como um contra-poder, que poderia até se opor às ditaduras. Mas há uma relação incestuosa entre os poderes econômico e midiático. Chega uma hora em que não sabemos mais quem controla quem. O papel do Estado é oferecer aos cidadãos contra-poderes. Quem sabe um canal de serviço público, que pode oferecer espaço amplo a todos os setores da sociedade. Eu não vejo diferenças no conteúdo dos canais privados em todo o mundo. No Brasil, na Venezuela, na Espanha… São os mesmos programas. Ao ver as novelas exibidas pela RCTV, parecia que a Venezuela era um país de europeus. Todos eram brancos. Não haviam negros, mestiços ou índios. Quando apareciam, era no papel de um malandro ou da pessoa que limpa a casa.
CC: Como regulamentar a situação, sem promover censura?
MA: O Estado pode favorecer a emergência de meios alternativos, oferecer uma regulação que permita a existência de rádios comunitárias, por exemplo. Quanto às tevês, um modelo a ser seguido pode ser o da BBC, no Reino Unido, ou dos canais de serviço público na França. Temos de garantir a diversidade. Existem países na América Latina que não possuem canais estatais, ou eles são inexpressivos. Chega um momento em que qualquer processo de transformação social se enfrenta ao poder midiático, porque o poder econômico fica na defensiva. A mídia vai defender os seus interesses.’
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