Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Casamentos e decapitações

Trata-se de um conto-reportagem do escritor britânico Hanif Kureishi, 53 (pai paquistanês e mãe inglesa). É uma história contada na primeira pessoa por um cinegrafista iraquiano. Apaixonado por cinema quando jovem, jamais pensara em filmar, como faz, casamentos, formaturas e banquetes. Mas agora, mesmo sem ser pessoalmente famoso, sem que sua existência tenha importado a quem que seja, tem certeza que seus trabalhos são vistos no mundo inteiro, em todos os noticiários de televisão e agora na internet.

É um profissional ‘recomendado’ e não pode recusar o trabalho que lhe é imposto, dizendo que vai ver um parente ou está ocupado. É chamado sem aviso prévio a qualquer hora, normalmente à noite: ‘eles’ o estão esperando à porta com a metralhadora em punho. Entram no carro, cobrem-lhe a cabeça e, como sempre tem que estar sozinho, o ajudam a levar o equipamento, em outras coisas e até na iluminação. Não dá para mostrar no resultado do trabalho que seu estilo, sua forma artística, sejam reconhecidos. Ele registra (imagens e sons) as decapitações, que agora se tornaram comuns nesse país devastado pela guerra onde ele nasceu e cresceu.

Sua indignação é irônica. Mandou fazer um cartão de visitas onde se pode ler: ‘Casamentos e Decapitações’. Por incrível que pareça, sempre lhe dão alguma coisa pelo ‘incômodo’ e ainda brincam: ‘Da próxima vez, talvez te daremos até um prêmio. Vocês adoram estatuetas e coisas do gênero, não é verdade?’

Explica que não tem muitos particulares para contar. Que cortar fora uma cabeça é um trabalho sério para quem não é açougueiro como estes, que cumprem sua tarefa com entusiasmo, não escondendo o prazer que encontram em fazê-lo. Para obter uma boa filmagem deve-se enquadrar bem os olhos da vítima antes que esta seja vendada. Depois, ‘eles’ levantam a cabeça destacada do corpo com sangue a escorrer. A filmagem tem que ser feita com todo o cuidado, pois não existe repetição. Se faltar alguma coisa, tudo estará perdido.

A censura da BBC

‘Eles’ querem ver imediatamente o resultado das filmagens, então aplaudem e festejam atirando para o alto, depois colocam o corpo num saco e o jogam em qualquer lugar.

Conclui o protagonista: ‘Um dia gostaria de rodar um filme verdadeiro, talvez começando por uma decapitação para contar essas histórias macabras. Sempre tive interesse pela vida, mas do jeito que as coisas vão, acho que terei que cumprir essa tarefa por um bom tempo. Às vezes me pergunto se enlouquecerei, ou talvez até essa via de saída me seja negada. Agora é melhor ir. Tem alguém na porta.’

Esse conto-reportagem devia ter sido levado ao ar por uma rádio, mas foi censurado. E por quem? Nada mais, nada menos, que pela British Broadcasting Corporation – a BBC. A direção da rádio explica que não se trata de censura, mas não é o momento oportuno, uma vez que existe um jornalista inglês, Alan Johnston, seqüestrado em Gaza, nas mãos de um grupo jihadista, e eles temem alguma represália.

Sobre o fato, diz Hanif Kureishi:

‘O rapto de Alan Johnston é algo terrível, mas não creio que o ato de censura da BBC seja algo que tivesse sua aprovação. Existem sempre jornalistas em perigo no mundo inteiro e nós os defendemos, defendendo a liberdade da palavra.’

Censurar esse conto-reportagem significa render-se ao terrorismo. E quem censura é a BBC, que foi, há pouco mais de 60 anos, um baluarte contra o totalitarismo nazi-fascista, e sempre lutou pelo conceito basilar do direito inglês: ‘Jamais permitir que os poderosos pisem os humildes.’

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Jornalista