Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Caso trivial vira tragédia shakespeareana

Três garotos são abordados por militares encarregados da segurança num morro do Rio de Janeiro. Segue-se uma discussão e os três são presos e levados ao comandante porque teriam desacatado a autoridade. Liberados, os três pobres coitados acabam sendo entregues a um grupo de marginais da favela vizinha, os quais executam todos e jogam seus corpos no lixo. De cara, aparecem os dois primeiros elementos da tragédia.

A Constituição de 1988 define claramente a competência das Forças Armadas e dela não consta a realização de policiamento ostensivo em área urbanas. Isto nos leva a outra questão. O que levou a autoridade constituída a obrigar os militares a cumprir uma missão que não lhe compete?

O primeiro elemento da tragédia se desdobra em muitos outros que remontam ao processo de urbanização do Rio de Janeiro. No século passado, várias cidades autônomas cresceram dentro da antiga capital do país. A autoridade constituída sempre se preocupou mais com o desenvolvimento da cidade litorânea, que é moderna, vistosa e habitada por população relativamente homogênea e rica. As cidades-favelas (constituídas por retalhos de tribos indígenas destruídas no processo de ocupação, negros fugidos, negros libertos e por migrantes nordestinos) nunca ocuparam o centro das atenções dos ‘donos do poder’ da cidade litorânea. Quando muito, os habitantes das ‘outras’ cidades do Rio eram (e ainda são) tratados como caso de polícia.

Monstrengo aterroriza favelados

O segundo elemento da tragédia é ainda mais trágico. Sob o ponto de vista legal, os três garotos abordados por militares não poderiam ter cometido crime de desacato. Os militares não têm poder constitucional para fazer policiamento ostensivo. Portanto, quando abordaram os futuros defuntos, eles não poderiam ser considerados ‘autoridades’ no sentido estritamente legal deste termo. Ao se recusarem a cumprir ordens de militares, os três garotos estavam agindo dentro da lei. Em tempo de paz, o militar só tem autoridade sobre seus comandados e os civis não são seus subordinados. Não são mesmo?

A República brasileira nasceu na caserna. Desde então, os militares se sentiram no direito de interferir diversas vezes na vida da nação. Este corpo estranho, que se diz o guardião da soberania, na verdade tem se comportando como se fosse o único e verdadeiro dono dela. No imaginário verde-oliva, a ‘doutrina da segurança nacional’ já justificou todo e qualquer abuso contra a Constituição, a democracia e a população. Foi a mesma que ‘legalizou’ o golpe de 1964 e o AI-5. Foi ela que, de 1964 a 1985, permitiu que alguns militares chegassem ao cúmulo de torturar e matar os contribuintes que pagavam seus salários. Até hoje, a ‘segurança nacional’ é o escudo que preserva a boa vida dos intocáveis torturadores e assassinos da ditadura.

Infelizmente, não tenho uma bola de cristal nem disponho da informação precisa e, portanto, não sei qual será a linha de defesa dos militares que providenciaram a execução dos três pobres favelados cariocas. Mas não ficarei nem um pouco surpreso se eles alegarem que agiram em ‘defesa da segurança nacional’.

A ‘defesa da segurança nacional’ é um mantra. Permitiu aos militares dar o golpe de 1964, prender, matar e torturar cidadãos para preservar intocada a estrutura social. Quando estavam no poder, os militares realizaram grandes obras (Itaipu, ponte Rio-Niterói, Angra 1 etc.), mas a maior de todas foi justamente a criação por omissão deste monstrengo que agora aterroriza os cariocas. Mas que aterroriza ainda mais os pobres favelados cariocas.

Rede Globo

Além de temer os traficantes, as milícias e o Bope, agora os favelados terão que ter medo dos militares. Em nome da ‘segurança nacional’, criou-se a nova jurisprudência: o servidor público militar pode encarregar o criminoso civil de executar seus inimigos. Quem foram os maiores inimigos das favelas brasileiras durante a ditadura? Quem permitiu que as mesmas fossem preservadas, se multiplicassem e engordassem?

Há bem pouco tempo, a CartaCapital publicou uma extensa matéria sobre a questão militar. O texto enfatizava a proposta de reforma das Forças Armadas do atual ministro da Defesa e as resistências que a mesma encontra na caserna. O incidente ocorrido no Rio de Janeiro reforça a necessidade de mudar a orientação dos servidores militares. Caso a ‘doutrina da segurança nacional’ seja substituída pela de ‘defesa do Estado’ novos incidentes como o que ocorreu no Rio de Janeiro não voltarão a ocorrer.

Antes de finalizar, gostaria de falar da cobertura televisiva do incidente. Tenho sido um crítico mordaz da Rede Globo, mas desta vez só tenho aplausos para o Bom dia Brasil. O jornalismo global ficou do lado da população, comprou a briga com os militares e fez muito mais que isto. Finalmente, a Rede Globo se distanciou claramente de seu passado militarista. Não sentimos nenhuma saudade dos tempos em que Roberto Marinho fazia salamaleques para os militares golpistas.

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Advogado, Osasco, SP