Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Catástrofe + cinismo + oportunismo

‘Nada menos do que 65% dos oito milhões de habitantes do Haiti vivem na miséria. A renda per capita do país é de US$ 361 (R$ 1.100,00). Ou seja: menos de um dólar por dia. Metade da população não tem acesso a água potável. E 72% não tem serviço de esgoto. Só 10% tem acesso a eletricidade – e atualmente só há energia elétrica oito horas por dia na capital.’

Este não é um retrato do Haiti após o desastre. É um fragmento de um artigo publicado no jornal O Globo e reproduzido no Ministério das Relações Exteriores (http://www.mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/selecao_detalhe3.asp?ID_RESENHA=63265).

A estrutura socioeconômica do Haiti é uma das mais perversas do planeta. As tropas internacionais que lá estão (incluindo as do Brasil) não fizeram mais do que preservar a vida e a propriedade da elite do país. Mais que isto: foi o Minustah que garantiu a vitória de René Preval em eleições que deveriam ter sido anuladas em razão de fraudes (ver aqui).

O terremoto deixou poucos prédios de alvenaria de pé em Porto Príncipe. É provável que apenas os barracos de tábuas tenham resistido ao terremoto. Suprema ironia. Em meio à destruição e à dor, somos obrigados a suspeitar que os barracos de madeira eram as únicas construções adequadas à geologia daquele país. Afinal, barracos são construções precárias que chacoalham; mesmo quando caem não produzem muitos ferimentos porque são feitos de materiais mais leves que alvenaria.

Pelas fotos aéreas que vi, concluí que muitas das vítimas foram os habitantes das mansões, prédios particulares e públicos existentes na capital do Haiti. Nas favelas de alvenaria a destruição também foi grande. Não há duvida de que o terremoto destruiu o centro do poder econômico, financeiro e político do país. Aqui, uma outra ironia.

São mais do que conhecidos os virulentos conflitos políticos e eleitorais entre os ‘mais iguais’ e os ‘menos iguais’ no Haiti. Muitos dos que agora se tornaram vítimas nunca se preocuparam muito com o destino dos seus conterrâneos miseráveis. A natureza equiparou os ricos aos miseráveis. Agora, todos no Haiti são miseráveis. Com tantos miseráveis é impossível não fazer uma pergunta dolorosa. Quem receberá o socorro internacional primeiro? Temos razões para desconfiar que no Haiti devastado os ‘ex-mais iguais’ serão atendidos antes que os ‘menos iguais’. É impossível não notar a grande atenção que tem sido dada ao resgate de sobreviventes nos hotéis de luxo que ruíram enquanto os favelados permanecem sob as pilhas de alvenaria.

Uma onde de solidariedade se espraia pelo mundo. Organismos internacionais e muitos governos anunciaram que vão doar centenas de milhões de dólares para socorrer os haitianos aflitos. Meus botões ficam arrepiados. Eles sabem que os oportunistas sempre procuram as corredeiras de dinheiro. No Haiti não será diferente. ONGs e empresas especializadas em abocanhar contratos de ajuda e reconstrução chegarão à grana antes que a grana chegue às verdadeiras vítimas.

Mas nada disto parece interessar aos jornais, especialmente aos que são televisados. Estes, como sempre, preferem se concentrar no show de imagens da terra devastada. Exploram escancaradamente a dor e as lágrimas das vítimas sem pagar um centavo de direitos de imagem às mesmas. Tenho vontade de rir quando vejo os telejornais se derreterem de elogios à solidariedade internacional.

‘Obama anunciou que vai doar 100 milhões de dólares ao Haiti’, dizem, abobalhados, alguns âncoras. E eles, jornalistas bem remunerados, vão doar o salário do mês para ajudar alguns haitianos? Duvido muito.

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Advogado, Osasco, SP