Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Cenas de insensatez

Em meados da década de 70, Umberto Eco classificou, como é fartamente sabido, de ‘apocalípticos’ e ‘integrados’ os dois lados antípodas de leitura dos meios de comunicação. Para dar um exemplo: a primeira ‘ótica’ consideraria a Rede Globo um monstro monopolista e manipulador; a segunda, uma produtora de bens simbólicos (jornalismo e entretenimento) gerador de empregos e cultura de massa. Ainda hoje, a cizânia persiste. Há ainda quem demonize a mídia seguindo a receita de oráculos das seitas simplistas, com suas palavras-de-ordem formuladas no reducionismo estratégico para mobilizar as turbas e receber convites para palestras de diretório estudantil. Ambas ignoram que os vários aspectos, positivos e negativos, retrógrados e progressistas, dos meios de comunicação, coabitam nestes, e que, com todos os desvios e defeitos, também têm função axial na democracia. Não se trata, portanto, de uma coisa ou outra, mas de uma coisa e outra.

Se a mídia não está cumprindo seu papel social, deve ser pressionada pela opinião pública, através da mobilização organizada e da crítica especializada. E o que espera um crítico de uma novela? Que ela tenha qualidade e êxito. Isto vale para novelas de todos os canais, pois desta forma o mercado de trabalho para artistas, técnicos e autores se expande e se consolida. Nem sempre uma ficção de qualidade faz sucesso, assim como nem sempre o melhor candidato é eleito. Não há fórmula de sucesso para uma novela.

Vilão só é punido no final

Mas a das nove da Globo, Duas Caras, de Aguinaldo Silva, já está sendo considerada um fracasso, embora essa tendência possa se reverter. Por que será? Sigo minhas hipóteses, embora uma trupe misógina já tenha condenado a protagonista Marjorie Estiano, por sua ‘falta de carisma’. Não é a primeira vez que essa brigada (formada por pederastas inzoneiros, poderosas invejosas e executivos para os quais a moça não deve ter dado bola) age com o mesmo método. A belíssima Gisele Itié também foi responsabilizada pelo fracasso de uma novela de Antônio Calmon, há coisa de três anos, e é castigada até hoje, condenada a fazer pontas. A interpretação de Estiano não é nenhum prodígio, mas não pode ser a causa, sozinha, da baixa audiência.

A novela de Aguinaldo não emplacou muito provavelmente em função de uma cena sinistra no primeiro capítulo: o desastre de carro, provocado pelo protagonista, que rouba o dinheiro da bagagem dos mortos. O Brasil é o país proporcionalmente recordista em acidentes de trânsito no mundo. Difícil encontrar alguém que nunca perdeu um amigo, um parente, ou alguém da família em acidente de automóvel. A recuperação dos pertences destas pessoas é algo raro, o que deixa as pessoas condoídas. Sabendo-se que o vilão só vai ser punido no final da novela, muita gente achou que não ia suportar encarar Adalberto até seu castigo final. É algo tão desagradável quanto agüentar um mandato de um candidato no qual não se votou.

‘É a confissão que dá a absolvição’

Mas teve algo pior. Aguinaldo tripudiou de um provérbio muito popular de fé cristã no Altíssimo: a mocinha, abraçada ao túmulo dos pais, chorando, em primeiro plano, agradecia: ‘Deus fecha uma porta, mas abre uma janela’. A janela a que ela se referia era o facínora do Adalberto, que estava em segundo plano pronto para abrir-lhe as janelas do prazer carnal.

Aguinaldo errou feio também na divulgação de seu folhetim. Para conseguir boa recepção à sua novela na mídia, concordou com a repórter da Folha em comparar Adalberto a José Dirceu, porque ambos fizeram plástica para mudar de rosto. Se há uma coisa que se há que respeitar é o passado de José Dirceu, de luta contra a ditadura. Uma vez no poder, errou. Corrompeu. Prevaricou. Mas muito pior fizeram os torturadores e seus mandantes que estão trafegando soltos por aí. Por que Aguinaldo não tem medo de torturadores, mas disse ter medo de José Dirceu? Então creio que a solução para Aguinaldo e José Dirceu é desculparem-se com a nação. Mesmo porque quem não pede perdão não é nunca perdoado. Quanto aos torturadores, Oscar Wilde neles: ‘É a confissão, e não o sacerdote, que dá a absolvição.’

Cada dia pior

A Globo trabalha com a tese de migração de público para mídias alternativas. Procedente, mas inconsistente. A tecnologia high-tech só é acessível a uma elite, que tradicionalmente não vê novela; estas são acompanhadas pelas classes média-média, média-baixa e baixa (e pelos críticos). As pessoas estão comprando TV como nunca, mas a cultura popular é mais forte que a mídia. Ninguém deixa de ir ao estádio ou a uma festa por causa de um capítulo de novela e só os tolos trocam um churrasco com amigos por bate-papos na internet. No interior, é comum os vizinhos se reunirem nas calçadas e ficarem contando causos até a hora de se recolherem, esnobando solenemente a programação do horário nobre. Muitas pesquisas de recepção já comprovaram que as relações interpessoais são mais poderosas na formação de opinião que os meios de comunicação.

Uma história em quadrinhos nacional de meados da década de 80 ilustra bem este fenômeno: extraterrestres com planos de dominar o mundo fecundam uma brasileira adormecida, que dá a luz a um ETezinho cuja aparência causa espanto, mas é criado com todo carinho, cresce forte e saudável. Um belo dia, comendo pipoca na sala, vê a programação da TV ser interrompida por seu pai biológico: ‘Atenção, XYXKDZ: você foi enviado a este lar com a missão de dominar o planeta Terra. Sua saga começa agora com a seguinte tarefa…’ O garoto levanta resoluto: ‘A Globo tá cada dia pior!’ E desliga o televisor.

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Jornalista, pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo e integrante da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi)