Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Censura, dos porões aos salões

Como era de se esperar, basta afinar o olhar e, bingo! Eis que o monstro da censura ataca mais uma vez. Mas, assim como o BBB milionário, ele reavaliou suas antigas táticas e as renovou: nada de estardalhaços e porões escuros, de pancadas e palavrões espúrios, como nos leva a crer o longo comercial criado pela agência F/Nazca para o Centro de Referência sobre Liberdade de Expressão, instituição mantida pelo Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) e pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). O monstro agora age sorrateiro, dissimulado e, acima de tudo, certeiro, aliado à maior especialista no assunto: a publicidade.

Em meio à grande calamidade climática e social que atravessa, sobretudo, o estado do Rio de Janeiro, o noticiário de maior audiência no país não titubeou. Na última sexta-feira (09/04), o JN dedicou mais de dois minutos, um espaço digno de grandes reportagens, para a veiculação da matéria sobre o 7° Encontro Brasileiro das Agências de Publicidade. Naquele momento, nada de desaparecidos, centenas de mortos ou milhares de desabrigados. Lançando mão de técnicas dignas das notícias mais indispensáveis ao conhecimento público (cobertura realizada por um jornalista conceituado, nota de abertura e declaração de impacto no corpo da matéria), lá estava a relação mais espúria e, ao mesmo tempo, corriqueira da comunicação brasileira: a confluência do jornalismo com a publicidade.

Como não poderia deixar de ser, os abrilhantados vencedores, quase todos representantes dos grandes conglomerados de comunicação do país, agradeceram e discursaram sobre a honra, a responsabilidade e o privilégio de prestarem um serviço tão importante, pelo menos sob o ponto de vista do mercado publicitário. Ao receber sua condecoração, Rui Mesquita, do jornal Estado de S. Paulo, que ganhou o prêmio na categoria Liberdade, atirou: ‘As tiranias se instalam quando o Estado consegue deter, pela força, o livre fluxo das ideias. E as tiranias desmoronam quando a informação volta a circular.’ Tirania, porão, ditadura, qualidades que supostamente remetem à falta de liberdade de expressão, cerceamento da comunicação, repressão. Mas não à censura repaginada do século 21 que utiliza como ferramenta mais rotineira a visão comprometida conforme os interesses do momento, dando-lhe um caráter de informação, para pautar os assuntos que serão veiculados.

Triângulo amoroso

A união do jornalismo com a publicidade já não é mais novidade. Tornou-se corriqueira e está tanto no dia-a-dia do jornalista, quanto na rotina dos meios de comunicação. É, também, presença garantida no cotidiano dos mais assistidos telejornais brasileiros e, quando da ocasião de suas pomposas festinhas, é digna de espaços generosos. Mas essa relação é, na verdade, um triângulo amoroso no qual o terceiro componente, a censura, surge como um elo indispensável e, ao contrário do que ocorre nos mais ‘tradicionais’ triângulos, nada conflitante. Nesse verdadeiro ménage à trois, a censura troca de figura e se torna uma autocensura.

Leandro Marshall, em seu livro O jornalismo na era da publicidade, pondera que os profissionais de comunicação, ao se autocensurarem, levam em consideração em suas rotinas produtivas, antes de tudo, a capacidade que os assuntos possuem para gerar audiência, tiragem, lucro. Assim pautados pela lógica do mercado, exercitam a autocensura até o ponto em que tal prática se torne o feijão-com-arroz de sua profissão, deixando o caminho aberto para que a publicidade adentre o universo da informação.

O discurso da grande mídia brasileira parece unânime: regular é o mesmo que tolher a liberdade de expressão. Contudo, cabe a essa afirmativa, no mínimo, um espaço para discussão e questionamentos. Será que a falta de princípios formais para a comunicação não gera uma política informal ou tácita? E essas políticas implícitas não tendem a motivar ações perceptivas, improvisadas e espaçadas, quando na verdade, o ideal seriam as ações planejadas, estruturadas e integrais? E, ainda, por que não incentivar a participação ativa, estimulando o debate social e a busca por soluções mais consistentes, mas, ao contrário, boicotar as iniciativas existentes (como ocorreu com a 1ª Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009, que quase não foi divulgada nos grandes jornais e telejornais)? Ao que parece, dentro desse triângulo amoroso quem dita as regras é a dissimulada e onipresente censura. Ao contrário do que veicula o bem produzido comercial da F/Nazca, ela não está presa nos porões escuros e bem guardados da, suposta, liberdade de expressão. Com ares de auto-regulamentação e autocensura, aparece repaginada e se transforma em uma autocracia. E as três, juntas, são como outra prática intuitiva, a automedicação. Uma medida paliativa onde quem sofre é o próprio usuário, nesse caso, a população brasileira.

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Jornalista, publicitária e acadêmica em Educação Física, Florianópolis, SC