Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Chapeuzinho Vermelho em Portugal

Interessante e curioso é o mundo em que vivemos. Há pouco tempo quase todos ficamos sensibilizados com o fato de uma linda menininha loira, de quatro anos, ter desaparecido de seu quarto em um chalé de hotel de luxo em Portugal, mas seus dois irmãos gêmeos, de dois anos, terem permanecido no local. Os pais, ambos médicos britânicos, haviam saído para jantar com amigos e deixado a pequena Madeleine como baby-sitter dos miúdos – uma onda de revolta e investigações tomou conta de boa parte do mundo.


As investigações da polícia portuguesa não chegavam a nada e o mais perto de alguma coisa que se atingiu foi um cidadão luso-britânico que mora ali por perto, mas contra quem não se conseguiu levantar provas. A comoção foi tão grande que até um site foi criado para arrecadar fundos; os pais de Maddie, católicos, foram recebidos pelo papa Bento 16; apelos foram feitos desde a ‘mãe’ de Harry Potter, J.K. Rowling, ao atleta-astro David Beckham. Enfim, um prato cheio para especulações de toda sorte. E também para tiroteios entre a imprensa dos dois países.


Posso estar enganado, mas, vários anos atrás, não era Juca Chaves quem dizia e/ou cantava que o brasileiro primeiro desce em Lisboa e depois entra em Portugal? Essa imagem de estagnação permaneceu viva, como um império decadente sob as garras de ditadores fascistas fora de moda até a Revolução dos Cravos – depois que as coisas se estabilizaram, Portugal passou a correr contra o tempo para ingressar na União Européia, e mesmo com seu vizinho ibérico, a Espanha, mais adiantada e desenvolvida, caminha a passos largos para se situar como país equânime no Velho Continente. As piadas continuam, mas é sempre bom lembrar que o nosso português de piada, na Europa, não é o luso, e sim o belga.


Como nos casos de OVNIs


Mas o caso Madeleine acendeu as paixões nacionais e mexeu com os brios de nossa ex-metrópole e da ilha e acusações mútuas começaram a ser feitas, especialmente via imprensa.


Alguns fatos começam a ser elucidados e eis que a Polícia Judiciária portuguesa passa a considerar como suspeitos os próprios pais da menina: Chapeuzinho estaria com o Lobo Mau todo esse tempo em Portugal? Desde a incoerência de deixar crianças tão pequenas sozinhas até manchas de sangue que possivelmente seriam da menina, encontradas e verificadas por DNA em carro alugado quase um mês depois, entraram na história. Os portugueses acreditam que desde o início a polícia britânica esteve envolvida no caso, embora os dois países neguem, mas se descobriu que o pai da menina tem ambições políticas. Até o diário da mãe, em que ela supostamente reclamaria do comportamento histérico (sic) dos filhos e da pouca ajuda nas tarefas domésticas por parte do pai passaram a ser elementos probatórios.


A imprensa espanhola publicou, via El País, que o pai da menina se encontrou, inclusive, com o ex-secretário de Justiça norte-americano, Alberto Gonzáles, dentre outras autoridades. E, como não podia deixar de ser, como nos casos de OVNIs, avistamentos de Madeleine foram reportados em várias partes do mundo.


O telefone do padre


Como os pais de Madeleine são médicos com bons contatos sociais e políticos, desde cedo o caso se transformou em uma festa de mídia e essa é uma das justificativas da polícia de Portugal para dizer que seus trabalhos foram prejudicados desde o início. Também isso pode ser interpretado como uma forma polida, diplomática, de dizer que houve pressão internacional para que a Scotland Yard e congêneres conduzissem as investigações (caso isso seja verdade, se atuou como no caso do brasileiro Jean Charles, daqui a alguns anos vamos confiar mais nas informações policiais do Waquiristão do Norte que nos ‘brits’).


Voltando a El País, o jornal espanhol constatou que a emissora britânica Sky já estava no Algarve antes da própria polícia portuguesa! E a BBC não ficou atrás, mandando suas equipes também. Curiosamente, até o momento um grande número de jornalistas britânicos está de plantão naquela região de veraneio, mesmo sem nada de especial acontecendo por lá: chega a lembrar o nosso brasileiríssimo caso P.C. Farias, quando a imprensa de todo o país assentou base nas cercanias da casa de praia de Alagoas, enquanto se desenrolavam (ou enrolavam…) as várias perícias realizadas, e mesmo quando mais nada havia de concreto a se obter no local dos fatos.


Coisas estranhas foram relatadas em jornais ibéricos: a mãe da menina primeiro avisou a imprensa e depois a polícia portuguesa (fato que parece ser confirmado); os funcionários do hotel têm versões diferentes das da mãe de Madeleine e, dado muito curioso, antes de chamar a polícia, a mãe de Maddie também teria solicitado o telefone do padre local!


O método Jô Soares


Certamente há algo estranho nisso tudo: a ambição política de um cargo no Ministério da Saúde inglês por parte do pai? Até encontros com o atual primeiro-ministro Gordon Brown aconteceram.


E as desconfianças bilaterais se estenderam: do Diário de Notícias luso ao Mirror inglês, com tintas patrióticas iluminando as reportagens. Enquanto as autoridades publicamente dizem confiar no que está sendo feito, não havendo sequer uma lasca de desconfiança pública dos ingleses contra os portugueses, evidências existem de que desde o início policiais e agentes britânicos acompanharam o caso, junto com uma alta autoridade da ilha bretã. A imprensa, por seu turno, está no momento às turras: um lado, indignado com as conclusões do envolvimento dos pais na morte da menina (se é que morreu mesmo); o outro, com a interferência indevida em assunto policial interno, sem que oficialmente tenha sido solicitada ajuda ao Reino Unido.


Crianças desaparecem aos milhares em uma base quase diária; basta consultar os dados da ONU na internet. Mas esse caso teve uma repercussão especial – família de boa colocação social, uma linda loirinha e um mistério insondável, ao menos até agora.


Claro que devemos aguardar maiores avanços nas investigações e torcer para que a pequena Madeleine apareça. Mas a imprensa do Velho Mundo está se comportando como nas escaramuças regionais brasileiras: tomando partido, investigando por conta própria sem meios e criando teorias conspiratórias. Talvez a verdade apareça um dia, mas esse caso ilustra que a Vovozinha bem que poderia ser o próprio Lobo Mau, que nem todos os pais são santos (e nem pais-de-santo) e que a polícia portuguesa talvez esteja fazendo um trabalho melhor que os colegas britânicos. Mas chegará o lenhador para salvar a menininha?


Bem cantou Chico Buarque: tanto mar a nos separar e o Brasil irá tornar-se um imenso Portugal. Só que isso foi em outro contexto político. Poderia ser usado o método Jô Soares – em seu Xangô de Baker Street foi chamado o famoso Sherlock Holmes para desvendar um melindroso caso que afetava o Imperador: será que nossa Polícia Federal não poderia ajudar no caso com uma ‘Operação Chapeuzinho’ ou coisa que o valha? Além de Madeleine, quem está sofrendo é a credibilidade da imprensa luso-britânica.

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Médico, São Paulo, SP