“Je suis Charlie” virou um símbolo pesado demais para o punhado de jornalistas que sobrou. Na velha redação perto da Bastilha, onde o horror aconteceu, a palavra de ordem está grafitada na parede do prédio, mas tudo em volta está deserto, cercado de barras de ferro. É na sede do “Libération” que, protegidos por policiais a paisana, os desenhistas continuam a fazer o jornal. Está difícil manter o “espírito do 11 de janeiro”, uma utopia feita realidade naquele dia em que quatro milhões foram às ruas, unidos, na defesa da liberdade. Cinco meses depois, o “Charlie Hebdo” vive uma crise interna – com abaixo-assinado, demissões e brigas –, a polêmica sobre quem eram os Charlies sacode Paris e faz vender montanhas de livros. “So French…”, diriam os britânicos.
O mito “Charlie” fez do cartunista Luz um mito na mídia. Autor dos desenhos de Maomé e da primeira capa do semanário depois da morte dos colegas, ele não aguentou a pressão e anunciou que está indo embora do jornal satírico. “Sempre brigamos com os símbolos e agora viramos um, é duro de carregar”, diz ele ao “Libération”. A partir de setembro, Luz vai pensar na vida e na morte, tentar entender-se com seus sentimentos de dor, raiva e medo, ainda perplexo de estar vivo só porque chegou atrasado para a reunião de pauta. “Cada fechamento virou uma tortura, passo noites de insônia pensando no que Charb, Cabu Honoré, Wolinski, Tignous teriam feito”, diz Luz .
O nome dele estava entre as 14 assinaturas de um manifesto à direção da empresa pedindo mais transparência na administração do jornal. Se antes o “Charlie” precisava das doações dos leitores para continuar circulando, agora ficou rico: a onda de solidariedade encheu com € 12 milhões o caixa do jornal satírico. Quem fica com o dinheiro? Estava combinado dar uma parte para as famílias das vítimas, mas nada ficou decidido sobre a divisão da grana, e esqueceu-se do projeto de os jornalistas terem parte da empresa.
“Charlie”, como os franceses, está em crise existencial. Sob a forma de ficção ou de ensaios, livros tratando da identidade francesa nestes tempos de jihadismo, islamofobia, recessão econômica e crescimento da Frente Nacional foram o sucesso nas livrarias, muitos com vendas de mais de meio milhão de exemplares – entre eles, “Submissão”, a narrativa de Michel Houellebecq sobre chegada de um muçulmano ao Eliseu.
A polêmica vendeu. A mais recente é provocada por “Quem é Charlie?”, um ensaio demolidor do antropólogo e sociólogo Emmanuel Todd. Ele rotula a França do 11 de janeiro como xenófoba, intolerante e autoritária. Descreve a maior manifestação na história desde a Liberação como “milhões de sonâmbulos se precipitando atrás de um presidente, escoltado por todos os representantes da oligarquia mundial, defendendo o direito de pisotear em Maomé”. Todd faz a análise das origens regionais e sociopolíticas dos protestos e conclui que “o mundo popular não era Charlie, os jovens do subúrbio não eram Charlie”.
Recebeu uma saraivada de críticas, disparadas pelos políticos – entre eles o primeiro-ministro Manuel Valls – e por intelectuais de todas as correntes. “Ele deveria tirar férias”, propõe Bruno Cautrès, chefe de pesquisas de Sciences Po. “É um livro estúpido”, diz o sociólogo Alain Touraine. Um e outro acham que existem erros metodológicos na análise do antropólogo, mas Touraine concorda que os jovens do subúrbio não estavam nas ruas, não por xenofobia, mas por questões de convicção política. A desindustrialização e a liquidação do mundo operário em alguns países – acoplada ao desaparecimento do comunismo e do socialismo na França – levaram grande parte dos jovens das periferias a aderir à extrema-direita. “Os jovens e os operários, em grande parte desempregados, não estavam lá porque são Frente Nacional”, diz o professor, referindo-se à recusa de Marine Le Pen de participar do protesto e à ideologia xenofóbica do partido.
Cinco meses depois dos atentados ao “Charlie Hebdo” e ao supermercado kosher, o que mudou? Tem polícia armada de metralhadora na rua, tem detector de metal na entrada dos museus, o Parlamento está para votar uma lei aumentando o poder de espionar a vida dos outros. Não aumentou a islamofobia nem o antissemitismo, constatou Bruno Cautrès em duas pesquisas – uma pré e outra pós-Charlie –, mas jihadismo e a relação com o Islã passaram a ser temas centrais da vida francesa. O espírito do 11 de janeiro não criou uma nova fraternidade e o jogo de empurra entre europeus para receber os imigrantes comprova que a solidariedade por cotas não existe. A defesa das liberdades públicas e individuais é, nenhuma dúvida, a linha divisória da política e dos afetos aqui e no mundo. Na vida francesa, diz Touraine, esta divisão está representada pelos que foram à manif – espiritual ou fisicamente – e os que preferiram se calar.
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Helena Celestino, do Globo