Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Chile, um país feito pela guerra

O Chile independente se constituiu territorial e economicamente pela guerra, às expensas da Bolívia, do Peru e de tribos indígenas. Esse é o ponto de partida do professor Antonio Carlos Peixoto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na quarta entrevista-aula ao Observatório da Imprensa sobre a história países sul-americanos.

Ver também ‘As muitas Américas do Sul‘, ‘Mídia brasileira precisa ver Paraguai além da caricatura‘, ‘Decomposição política da Venezuela antecede Chávez‘ e ‘Colômbia é violenta desde a independência‘.

O relato passa pela definição de características sociopolíticas que fazem do Chile o país do continente mais próximo de padrões europeus de organização da cena pública. Uma evidência desse paralelismo é que a derrota sangrenta da tentativa socialista de Salvador Allende inverteu a relação e fez a esquerda européia tirar do episódio do golpe militar, três décadas e meia atrás, a conclusão de que não bastava ter metade mais um dos votos para assegurar a aplicação de um programa socialista por meios democráticos.

A mídia jornalística, submetida à pressão do noticiário cotidiano e vulnerável ao jogo de análises enviesadas por interesses e opiniões, perde freqüentemente de vista a paisagem histórica sem a qual os fatos noticiados só se articulam, na melhor das hipóteses, em conjunturas efêmeras.

Isso não afeta apenas o retrospecto, mas também as previsões. De seu posto de observação, o professor Antonio Carlos Peixoto avalia como precipitadas as análises que apontam um esgotamento da fórmula da Concertación, a aliança entre democratas cristãos e socialistas responsável pelo trânsito chileno da ditadura para a democracia.

A seguir, a transcrição da entrevista.

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Primórdios difíceis

Quais são os traços mais importantes da formação histórica do Chile ao se tornar independente?

Antonio Carlos Peixoto – Em um dos seus textos Simón Bolívar faz uma espécie de análise dos futuros países sul-americanos e diz muito claramente o seguinte: o Chile vai ser país. Bolívar tinha um certo preconceito em relação à riqueza. Ele gostava do trabalho, mas a riqueza fácil… Então ele dizia que o Peru, por exemplo, era um país já envenenado pelo excesso de riqueza, pelo excesso de prata e ouro. Por que ele diz isso do Chile? Porque os primórdios do Chile, isso vai até a independência, entra pelo período já independente, são primórdios difíceis. O Chile não tinha a configuração geográfica que tem atualmente, se limitou durante muito tempo a uma área que se chama o Vale Central de Santiago, avançando um pouquinho para o Norte, uma zona que se chama El Norte Chico, onde está a região de Coquimbo. Acima dali é o Deserto do Atacama, não pertencia ao Chile, e abaixo de uma fronteira delimitada pelo Rio Biobío era território índio, dos araucanos.

O Chile é um país muito estreito. A largura máxima é de 400 quilômetros, a mínima de 90 quilômetros. As terras não são de grande fertilidade. No Chile colônia e no Chile imediatamente pós-independente, a vida é árida, numa terra que não é das mais férteis, num território que não é rico.

O Chile já é um produtor de vinho, desde o final do século 17. O vinhedo chileno é o mais antigo da América Latina, eu diria até do hemisfério americano. Eu não sei quando começou o vinhedo espanhol na Califórnia. Mas o vinhedo chileno tem mais de 300 anos. O Chile é exportador de vinho para o Peru. Tem alguns cereais, mas não de alta produtividade. No século 19ele vende cereais inclusive para a Califórnia, antes que o Middle West americano fosse conquistado e transformado em celeiro e houvesse a ligação ferroviária entre os dois oceanos.

Deserto rico em minerais

O quadro chileno começa a mudar a partir dos anos 40 do século 19. O Deserto do Atacama, que pelos traçados coloniais pertencia à Bolívia, é rico em minerais, só que não é explorado pela Bolívia. Quer dizer, a elite boliviana é uma elite centrada no Altiplano e muito ligada à exploração da prata. O que é hoje a província chilena de Antofagasta – tomada da Bolívia, mas nesse momento a que estou me referindo território boliviano – é um território quase que inteiramente desocupado. A Bolívia praticamente não fincou bandeira ali. Ora, uma área limítrofe de um país que fica desocupada durante muito tempo acaba sendo ocupada. Nós sabemos disso. Pode ser justo, pode ser injusto, mas a questão não é essa. A questão é que alguém vai ocupar.

Alguns empreendedores chilenos já ligados à mineração entraram nesse território e iniciaram a exploração. Isso atravessa os anos 1850, vai pelos anos 1860, as elites bolivianas continuam inteiramente indiferentes ao que se está passando ali, sempre voltadas à exploração da prata no Altiplano. E o Chile vai desenvolvendo ali uma economia mineral muito baseada na exploração do salitre. O salitre, no início do século 20, será um minério importante. É insumo para duas coisas básicas, a pólvora e uma nascente indústria de adubos.

A Guerra do Pacífico

Nos anos 1870 a Bolívia reivindica o território e começa a querer cobrar impostos. Os impostos estavam uns 30 anos atrasados, porque durante 30 anos as pessoas exploraram aquilo à vontade sem ter que pagar um tostão. Já se sabe como é: ‘Ah, mas nós exploramos isso daqui durante 30 anos sem pagar nada, não é agora que vocês vão pedir impostos. Agora nós nos recusamos a pagar’.

A guerra reconfigurou o território chileno.

A.C.P. – O resultado foi uma mobilização militar que deu origem à Guerra do Pacífico. O Peru entra na guerra, primeiro porque imediatamente ao norte de Antofagasta está a província peruana de Arica, que hoje é chilena. Mas naquele tempo não era, foi tomada na guerra. E acima disso está a província de Tacna, que também foi tomada na guerra pelo Chile, mas que, por uma política de boa vizinhança, para dar um cala-boca ao Peru, e como era uma província que não tinha nada de aproveitável, foi devolvida ao Peru.

A segunda razão para a entrada do Peru na guerra é mais complicada. Ela não tem um motivo sólido, é uma questão praticamente de equilíbrio de poder. Nos anos 30 do século 19 existe uma tentativa por parte de uma liderança política que é boliviana, nasceu na Bolívia, mas no Altiplano boliviano, quase na fronteira peruana, de reunificação do Peru e da Bolívia, como no período colonial, quando a Bolívia pertencia ao Vice-Reino do Peru. Chama-se Andrés de Santa Cruz e efetivamente toma o Peru.

Chile não aceita que Peru e Bolívia formem um só país

Ora, a percepção do Chile, por parte de Diego Portales, considerado o fundador do Estado chileno – foi ele que deu a estrutura institucional do Chile no século 19; um homem iletrado, mas extremamente sensato, esperto, sereno –, leva-o a dizer muito claramente o seguinte: o Chile não pode sobreviver a uma união entre Peru e Bolívia. Isso para nós é impossível. O Estado chileno vai ser afogado, vai sucumbir diante disso. Ele se apóia no antigo presidente do Peru, deposto quando Santa Cruz realizou a união, Agustín Gamarra. Portales se apóia em Gamarra, declara uma guerra e é vitorioso, ou seja, consegue o objetivo, que é separar novamente o Peru e a Bolívia.

O Peru tem medo do Chile porque as tropas chilenas já tinham ocupado Lima uma vez, e acaba entrando na guerra ao lado da Bolívia.

A guerra não tem surpresas. Coisas escabrosas ocorreram, não do lado chileno, mas do lado peruano e boliviano. O resultado é que a coligação foi derrotada, o Exército chileno ocupa aquele território uma segunda vez. O Chile toma Antofagasta, Arica, Tacna.

Em Antofagasta está a grande riqueza mineral chilena. Quando não tem mais salitre, é cobre, é molibdênio. Toda a base de exportação mineral chilena está sediada em Antofagasta. E nós vamos ter então uma economia baseada na mineração, economia relativamente próspera que vai durar mais ou menos até o início do século 20, até a Primeira Guerra Mundial, quando a indústria química alemã, como não podiam mais importar o salitre, criou o salitre sintético. É quando o Chile recicla para o cobre.

Alternância com predomínio conservador

Do ponto de vista político-institucional, o quadro montado por Portales vai demorar. Ele prevê um período presidencial longo, dez anos, o sistema partidário oscila entre conservadores e liberais, mas os conservadores estão sempre levando a melhor, governam o Chile durante trinta anos. [Os liberais tomam o poder em 1861.] E nos anos 60 é criado o Partido Radical Chileno.

O Partido Radical é importante na história chilena, mas principalmente no século 20. No século 19 ele está despontando. A importância dele é que ele é o primeiro partido laico, tem uma plataforma laica, portanto de separação entre Igreja e Estado.

Esse quadro institucional, em que há alternância entre conservadores e liberais, vai durar até os anos 90, quando ocorre o primeiro abalo no sistema institucional, com a presidência de [José Manuel] Balmaceda.

Suicídio, resposta de Balmaceda a golpe de Estado

Esse homem, na época do golpe de [Augusto] Pinochet, na morte de [Salvador] Allende, foi muito lembrado, porque também enfrentou um golpe de Estado e suicidou-se. Não quis passar pela vergonha de ser deposto, e dizem até que, do ponto de vista subjetivo, Allende em alguma medida se inspirou em Balmaceda.

Esta questão está ligada à revisão de contratos com companhias inglesas que tanto exploravam carvão como estavam associadas à exploração do salitre. É vista na historiografia como uma daquelas manobras clássicas do chamado imperialismo: o presidente não está facilitando a nossa vida, então deponha-se o presidente. A Marinha chilena ficou contra Balmaceda; o Exército chileno ficou, na sua maioria, com Balmaceda.

Treinamento militar prussiano

Vamos dizer uma coisa curiosa: as Forças Armadas chilenas foram as primeiras da América Latina a terem treinamento orientado por missões militares estrangeiras. Isso é uma coisa importante. O exército chileno foi treinado e orientado por uma missão militar alemã. Ou seja, uma missão militar que chegou lá depois da vitória da Prússia na Guerra Franco-Prussiana [1870-1], depois da unificação da Alemanha.

Pegaram o que supostamente havia de melhor no exército alemão…

A.C.P. – No exército alemão, não, entre os exércitos do mundo. Porque depois da Guerra Franco-Prussiana o exército alemão emerge já como campeão. A marinha chilena foi treinada por uma missão militar da Royal Navy britânica. Eles escolheram a dedo. É uma coisa curiosa porque o Chile – e aqui estou dando uma opinião pessoal, não é um relato objetivo, é uma percepção que eu tenho – é certamente o único país da América Latina que tem uma cultura marcial, uma cultura profundamente ancorada na guerra. É uma percepção de um país feito pela guerra.

Uma coisa que a Argentina não tem, o Brasil também não tem. Nós não temos cultura marcial nenhuma, nós temos cultura da violência, que é outra coisa. A esculhambação do sujeito que é cumpridor de deveres ser chamado de Caxias já mostra isso. O povo brasileiro até gosta do Exército, mas cultura marcial, coisa da guerra, não tem.

Um país feito pela guerra

O único que tem é o Chile, a idéia de um país feito pela guerra. O norte do Chile foi conquistado da Bolívia e do Peru; o sul do Chile, que era o território araucano, logo depois da Guerra do Pacífico, nos anos 80 do século 19, os exércitos vitoriosos da Guerra do Pacífico foram lançados contra os territórios araucanos, contra a selva. Não é selva no sentido de Amazônia. São florestas de clima temperado. Os assentamentos indígenas foram arrebentados. Ou seja, o Chile tomou posse de todo o seu sul, que vai dali até Punta Arenas.

A idéia é que a guerra fez o Chile. No fim da década de 1970, numa dissertação de mestrado no Instituto de América Latina, em Paris, um chileno trabalhava um tema muito interessante, a percepção oferecida às crianças do curso primário e do equivalente do nosso antigo ginasial em livros didáticos chilenos. E realmente era uma coisa assombrosa. Mas não havia livro didático de esquerda, de centro, de direita, que não tivesse essa visão de um Chile feito pela Guerra. [O lema nacional chileno é: ‘Por la razón o la fuerza’.]

Eu li alguns trechos desses livros didáticos que ele me emprestou e me lembro de um que me impressionou. Dizia o seguinte: só existem dois povos no mundo que quando olhados de frente não tremem e nem desviam o olhar: os alemães e os chilenos. Uma coisa de louco! Talvez os alemães porque foram eles que treinaram os chilenos. Alguma besteira dessas. Mas essa percepção de uma cultura marcializada, de um país feito pela guerra, no caso chileno é realmente muito forte.

E isso talvez ajude a explicar por que há grupos armados tão persistentes, que acompanham todo o processo do Allende, o pós-Allende, há um chileno que esteve preso em Presidente Prudente, Norambuena.

A.C.P. – Do seqüestro de Abílio Diniz?

Sim. Um remanescente da luta armada que não depôs as arma. Parece que virou seqüestrador. O fato é que havia diferentes grupos armados: o Partido Comunista tinha… O Socialista… Todo mundo tinha… Mas falemos da estrutura social chilena.

Um operariado capaz de fechar o país

A.C.P. – Ela tem uma característica que se encontra na Bolívia, no Peru, mas em condições diferentes. Na estrutura social chilena, por causa do peso da mineração na economia nacional, forma-se um proletariado altamente concentrado do ponto de vista geográfico. Um proletariado que é capaz de fechar o país. É uma coisa mais ou menos óbvia. Veja as greves de São Paulo no fim da Primeira Guerra Mundial, dói no bolso do proprietário da fábrica, mas não perturba a vida do Brasil do ponto de vista econômico: o Brasil exporta café.

O Chile exporta minério. Fecha-se uma mina durante quinze dias por causa de uma greve. Não vai ter saída. O país vai pagar um preço por isso. É diferente. Agora, no caso chileno o proletariado é diferente do boliviano e do peruano porque na Bolívia e no Peru ele é índio e no Chile não é. É gente pobre do Chile.

Que origem étnica tem essa gente?

A.C.P. – Imigrantes. A sociedade chilena, no século 19, na medida do seu desenvolvimento, na diferenciação social, foi criando gente pobre. Pobre vai ser proletário. Tem algum contingente de mistura indígena, mas deve-se lembrar que os territórios indígenas só foram conquistados pelo Chile depois da Guerra do Pacífico, nos anos 1880. Nos anos 80 a mineração chilena já tinha começado. Não estou dizendo que não tem índio. Tem. Tem mistura, tem coisa misturada de branco com índio.

Mas não tem na proporção do Peru, da Bolívia, do Equador.

A.C.P – Exatamente. O proletariado boliviano é índio. O proletariado mineiro peruano é índio. O chileno não é, na sua maioria. Tem imigrante, tem o diabo a quatro, tem tudo.

Luta de classes mais violenta

Esse proletariado, altamente concentrado numa determinada área, tem comunicação mais fácil e adquire rapidamente a consciência de que tem um brutal poder de pressão. Esse brutal poder de pressão não vai ser reconhecido pelo Estado chileno. O resultado, a violência nas relações de trabalho, nas relações sociais das zonas mineiras do Chile, é um fato histórico, objetivo e comprovado.

Não houve pais da América do Sul que tivesse uma tradição de violência na chamada luta de classes, no enfrentamento de classes, como o Chile. Os massacres mineiros que ocorreram no início do século 20estão aí para comprovar. Tem até uma cantata que faz parte do folclore chilena, chamada Santa Maria de Iquique. É uma coisa muito dramática.

Aliás, a música folclórica chilena é triste, evoca mais a morte, a desgraça. É um país que vive muito, no seu imaginário, a dimensão da tragédia, da coisa violenta, da coisa trágica. Não é um país alegre. Mesmo aquela alegria falsa do tango, mas o tango acaba sendo levado no deboche, na gozação. O portenho é maluco, mas não necessariamente dramático. Ele tem também um jeito extrovertido que o chileno não tem. O imaginário chileno é realmente muito complicado.

Partidos de esquerda nascem proletários

Essa tradição de violência nas relações sociais do Chile é muito forte. Ao mesmo tempo, esse proletariado é um proletariado que luta, que se manifesta. Como ele é um proletariado forte e tem uma alta capacidade de pressão sobre o Estado, ocorre no Chile uma coisa que não vai ocorrer nos demais países sul-americanos ou até mesmo latino-americanos. Os partidos de esquerda, em primeiro lugar o Partido Socialista, que é mais antigo que o comunista, nascem dentro do movimento sindical. Essa diferença é central.

Bem diferente do quadro brasileiro.

A.C.P. – A esquerda aqui no Brasil não tem nada a ver com o movimento sindical. Veja-se o caso do Partido Comunista, que nós conhecemos melhor. Nove caras se reúnem lá numa noite perdida em Niterói, o Hermogênio [Silva], o Astrojildo [Pereira], não sei mais quem, e criam o Partido Comunista. Em algum momento Astrojildo sai correndo atrás do Luís Carlos Prestes, que era um oficial do Exército.

Veja-se o caso argentino. O movimento sindical argentino é quase todo um movimento de terciários – ferroviários, portuários. E os partidos de esquerda não nasceram ligados a eles. Nasceram mais ligados a imigrantes, gente que chegava, que tinha ocupações mais ou menos variadas.

Paradigma partidário europeu

O caso chileno é assintomático em relação à América do Sul. Tem-se a reprodução de um paradigma europeu. O partido de esquerda está ligado quase que umbilicalmente aos sindicatos.

Criado o Partido Comunista do Chile, nos anos 1920, houve uma divisão, mas é uma divisão por dentro dos sindicatos. O Partido Comunista não é um partido de fora dos sindicatos. Ele disputa com o Partido Socialista dentro dos sindicatos. A grande figura ali é Emilio Recabarren, indivíduo que, para seguir a tendência dramática e triste da história chilena, acabou se suicidando por razões até hoje desconhecidas. Deve ter sido mesmo depressão, mas uma depressão estranha, porque ele era uma personagem venerada na esquerda chilena, no movimento sindical. Uma coisa esquisita, essas coisas estranhas que acontecem.

O perfil partidário chileno vai tomando uma configuração muito européia. Pela esquerda, primeiro o Partido Socialista e depois o Partido Comunista. [O Partido Socialista foi criado formalmente em 1933, mas sua história data da segunda metade do século 19. O PC chileno foi fundado primeiro como Partido Operário Socialista, em 1912, e novamente em 1922 como Partido Comunista.] Pelo centro tem-se o Partido Radical, um partido laico, de defesa da liberdade, e se tem uma convergência cada vez maior de conservadores e liberais: uma direita que está se formando. Quer dizer, já existia como direita, só que em algum momento, nos anos 50 do século 20, ela se unifica. Ela vai ser o Partido Nacional, o partido que mais violentamente se opôs a Allende. [Jorge] Alessandri quase ganha a eleição de Allende, perdeu por um ponto e alguma coisa [Allende, 36,6%; Alessandri, 34,9%]. Um perfil partidário que é muito europeu. Direita, centro e esquerda. E uma esquerda polarizada, como nos países europeus, entre socialistas e comunistas.

Havia até uma velha copla, uma velha canção popular chilena que dizia o seguinte: ‘El Chile tiene dos males, peores que los temblores, son los liberales y los conservadores’. Porque a elite obviamente ou era conservadora, ou era liberal.

Direita que se assume e se organiza partidariamente

Então, é essa coisa que já diferencia o Chile do resto da América, eu diria mesmo da América Latina. É um perfil partidário muito clássico e muito europeu.

E, em segundo lugar, uma direita politicamente organizada, que se expressa por partidos. O que é a direita aqui na América do Sul? Sempre foi uma coligação que se organizava nos momentos de perigo à vista e que incluía segmentos militares, segmentos empresariais e segmentos da Igreja Católica. Era isso, a direita. Obviamente, com alguma representatividade junto a personalidades, principalmente das profissões liberais. Tinha alguns advogados de grande renome, para assinar abaixo-assinado, manifesto, tinha médicos, engenheiros, etc. Mas no fundo era isso: militares, empresários e a alta cúpula da Igreja.

Isso foi verdade no Brasil, mas também na Argentina, foi verdade no Uruguai. Sempre foi isso.

Não é o caso no Chile. No Chile existe um fenômeno estranho. O indivíduo que é de direita, o cidadão médio que é de direita, não tem vergonha de dizer que é de direita. A direita chilena bota a cara na janela, ela tem partido político por detrás. O enfrentamento no Chile se dá dentro dos quadros partidários, mas quadros partidários com linhas de clivagem, com linhas de diferenciação com uma nitidez muito grande. Não é esse imbroglio partidário que caracteriza freqüentemente a América do Sul.

É preciso fazer um retorno às primeiras décadas do século XX. Quando Balmaceda caiu [1891], a reorganização política do país levou à adoção do parlamentarismo. O Chile vai ser uma república parlamentarista até 1925, quando retorna ao presidencialismo.

Entram em cena o cobre e americanos

A outra modificação sensível é que, como já mencionei, depois da Primeira Guerra Mundial a economia chilena não pode mais se sustentar na exportação do salitre, que se torna uma exportação marginal, irrisória. Mas ele é substituído pelo cobre. Com a diferença de que o cobre é controlado por duas grandes empresas americanas, então já se tem um momento de maior penetração dos Estados Unidos na economia da América do Sul. Não quer dizer que não haja, como se chamava no Chile, uma minería nacional, empresas mineradoras nacionais chilenas, que tudo fosse controlado por essas duas grandes empresas americanas. Mas isso é a minería chamada chica, pequena; a grande mineração, essa, é dos EUA.

Há um período de boom na economia chilena durante os anos 1920 que vai terminar com a crise de 1929. Crise de 29 que também vai resultar não só numa grande crise econômica, mas também política no Chile. É uma crise da qual o Chile só vai sair nos anos 1940, logo depois da guerra.

Alessandri e os segmentos populares

A incorporação de segmentos populares no processo político chileno apresenta especificidades?

A.C.P. – Arturo Alessandri é o grande homem da incorporação dos segmentos populares no Chile. No primeiro mandato [1920-25] ele tem inclusive o codinome de Leão de Tarapacá, que é uma boa marca de vinho chileno. Lá do norte do Chile. Ele é um homem do norte, é eleito presidente, procura fazer aquilo que o Alfonso Lopez dez anos mais tarde vai procurar fazer na Colômbia (ver ‘Colômbia é violenta desde a independência’, remissão acima). É um homem que lutou pela incorporação dos segmentos populares.

Esse processo no Chile é mais complicado porque a mineração chilena está na mão dos estrangeiros. O que se vai fazer? Confiscar as minas? Nacionalizar as empresas? O processo vai se arrastando até a crise de 1929, que vai explodir em 1932 com um golpe. Aparece a figura de Marmaduque Grove [militar socialista que em 1932 liderou um golpe militar].

Os anos 1920, 1930 serão de profunda tensão social no Chile, porque há um esforço permanente pela incorporação dos setores populares, pelo reconhecimento deles, pelo reconhecimento dos sindicatos. Nos anos 20 é criado o Partido Comunista do Chile. Nasce dentro dos sindicatos. E nos anos 30 nós vamos ter também a criação da Democracia Cristã, dentro de um movimento que é iniciativa da igreja católica espanhola .

Um cenário sem partido populista

Há dois partidos pela direita, liberais e conservadores; dois partidos pelo centro, os democratas cristãos e os radicais, apesar de que no começo a Democracia Cristã é um pouco mais para a direita do que para o centro, e dois partidos pela Esquerda, comunistas e socialistas. Por causa disso eu digo que na América Latina, aí estou incluindo o México, não se vai encontrar uma armação tão paradigmaticamente européia como no Chile.

Não se terá um partido de tipo populista, como acabou sendo o peronismo na Argentina, como acabou sendo o PTB aqui no Brasil e como nós vamos encontrar, por exemplo, a Opção Democrática na Venezuela, o APRA de Haya de La Torre, no Peru, o MNR na Bolívia.

O cenário partidário chileno é de reprodução de um quadro europeu. E o populismo, quando surge, vai surgir por dentro de um dos partidos, não é um fenômeno de fora dos partidos, ninguém cria um outro partido para encarnar as principais bandeiras e os principais slogans do populismo. Isso é o que eu acho uma coisa muito importante de se retratar no caso chileno.

É nesse vácuo que Allende vai mergulhar. E pressionado pela esquerda, pelo MIR [Movimiento de Izquierda Revolucionaria], com Miguel Enríquez. Que pressionava Allende pela esquerda, dizendo que Allende estava na direita. O negócio do MIR era acelerar o processo de nacionalizações. Quer dizer, nacionaliza tudo, fábrica de sorvete, fábrica de prego, de parafuso, coisas assim. De sorvete eu não sei, mas a de parafuso eu sei que foi nacionalizada, sim, porque Sérgio Morais [engenheiro brasileiro que esteve exilado no Chile] me contou. Quer dizer, não tinha intuito nenhum de transferir a propriedade de mãos privadas para a mão do Estado, os operários queriam é ser funcionários públicos.

Como se desenvolveu o processo que vai culminar na tentativa socialista de Allende?

A.C.P. – O processo de transformações da América do Sul, até na escala da América Latina de um modo geral, que incluísse o México, é algo que começa, normalmente, nos anos 30. É o caso do Getúlio Vargas, no Brasil, de Juan Domingo Perón, que começa a ter algum papel relevante na Argentina. No Chile, esse processo foi antecipado. É nos anos 20 que vai começar uma pressão, eu diria de natureza populista, mas populismo no sentido clássico da palavra, não no sentido que a imprensa está usando atualmente, não no sentido da demagogia, da irresponsabilidade fiscal, do gasto público exacerbado, mas no sentido de inclusão dos setores populares.

Populismo `clássico´ e populismo do século 21

Não existiu já no passado uma visão muito negativa daquilo que vem a se chamar de populismo? Por exemplo, [Francisco] Weffort escreveu um livro com visão crítica [O populismo na política brasileira].

A.C.P. – Mas Weffort tratou o fenômeno do populismo no sentido mais clássico da palavra. Ele pode ter uma postura contrária, a favor, ou muito pelo contrário, mas não é o modo pelo qual a imprensa, de um modo geral, está entendendo a palavra populismo neste momento. Neste momento o populismo está associado à demagogia, ao gasto público desmedido e à irresponsabilidade fiscal, quer dizer, o governo vai lá, o Estado vai lá, mete a mão como quer, do jeito que quer.

Eu preservo realmente o conceito clássico de populismo como fazendo parte de uma linhagem conceitual latino-americana. Isso não significa que eu seja um adepto fervoroso dele, isso não significa também que eu esteja demonizando a palavra populismo no seu sentido clássico. Mas uma coisa que tem que ser entendida é que o populismo nem sempre representou isso de que está sendo acusado agora.

E agora as pessoas estão se referindo mais especificamente a Hugo Chávez, a Evo Morales, ao novo presidente do Equador, o Rafael Correa, e a Ollanta Humala, que perdeu a eleição no Peru.

Estou usando a palavra populismo no seguinte sentido. Populismo foi um movimento de incorporação dos segmentos populares que favoreceu o processo de sindicalização, que usou mecanismos redistributivos de renda, diferente do que o Lula está usando agora, como o Bolsa Família, não é a mesma coisa, mas usou. Getúlio, aqui, fixou salário mínimo, Perón deu aumento de salário. Quer dizer, houve processo redistributivo de renda, houve mecanismos de redistribuição indireta e houve fortalecimento do papel dos sindicatos. É claro que houve um esforço dos respectivos governos de exercer mecanismos de controle sobre o processo de sindicalização e sobre o movimento sindical.

A estrutura óssea do movimento sindical brasileiro, criada por Getúlio, foi arranhada nas bordas, mas o essencial continuou. Tem imposto sindical, tem uma porção de outras coisas. Favoreceu os peleguismos? Favoreceu. Mas o problema é que antes não havia peleguismo porque simplesmente não havia sindicato. Sindicato era uma estrutura reprimida, uma estrutura que não era feita pelo sistema político, uma coisa quase clandestina.

É importante o senhor mencionar isso, porque o leitor de hoje realmente pode não ter noção da importância que teve esse processo. E na medida em que o senhor valoriza a antecipação da emergência disso no Chile, o leitor pode dizer assim: Bom, mas e daí? E daí, não, porque isso fez muita diferença.

A.C.P. – Sem dúvida alguma. O populismo, nesse sentido que estou utilizando, foi um fenômeno recorrente na América do Sul. Ele aconteceu na Colômbia com Alfonso Lopez, ele vai acontecer no Peru também em algum momento, ele acontece no Chile, ele acontece na Bolívia, acontece na Argentina. É um fenômeno da política sul-americana, não tem o mesmo significado da demagogia que está sendo atribuída agora a ele. Isso eu acho que é uma coisa que precisa ser muito repisada para que não haja confusão. Senão as pessoas pensam que a manifestação do populismo é Evo Morales. Não é bem assim.

O fenômeno de Evo Morales simplesmente é inédito. Representante da população indígena chegar ao poder.

A.C.P. – É verdade. Esse fenômeno do populismo, no Chile, vai começar mais cedo, pela figura de Arturo Alessandri. [Esse primeiro Alessandri foi presidente duas vezes: de 1920 a 1925 e de 1932 a 1938. No intervalo, ocuparam a presidência Emiliano Larraín, Carlos Ibáñez, de 1927 a 1931, e Juan Esteban Montero. Após seu segundo mandato, Arturo Alessandri foi sucedido por Pedro Aguirre Cerda e este por Juan Antonio Ríos.]

Réplica das Frentes Populares

A especificidade de Pedro Aguirre Cerda e Juan Antonio Ríos é que eles são a réplica, a versão sul-americana das frentes populares européias.

O Partido Comunista do Chile vai adotar, de acordo com um famoso informe de [Georgi] Dimitrov [comunista búlgaro que era secretário-geral do Comintern, a Internacional comunista, submetida ao Partido Comunista da União Soviética], de 1935, a tática da Frente Popular. Vai buscar a unidade com os socialistas e os radicais.

Em 1938 ele consegue eleger Pedro Aguirre Cerda. A extrema-direita no Chile criou uma milícia paramilitar pesada. O Chile teve uma imigração alemã bastante significativa. Não creio que numericamente tenha sido maior que a brasileira. A diferença é que a população brasileira era muito maior que a chilena. Então essa imigração alemã no Brasil se dilui, mas no caso chileno, não. Ela aparece como uma imigração extremamente significativa. Nos anos 1930, indivíduos sinistros botam a cabeça de fora e vão criar um grupo paramilitar nazi-fascista que usava camisas cinzentas [Movimiento Nacional-Socialista Chileno, MNS].

Li na Revista de História da Biblioteca Nacional que a segunda maior seção do partido nazista fora da Alemanha era a do Brasil. Em primeiro lugar vinha a da Áustria. É de lascar.

A.C.P. – Eu não duvido. Porque ali na área do Sul, com boas ramificações em São Paulo e quiçá até no Rio de Janeiro, em Minas também, havia uma coisa mais ou menos compacta, que se diluía no Nordeste, da Bahia para cima…

A estratégia é obviamente colocar o Chile no campo dos países que se opõem ao nazi-fascismo e também barrar internamente o ascenso dos camisas cinzentas chilenos. E a tática funcionou no Chile. Pedro Aguirre Cerda foi a expressão de uma frente popular chilena que incluía comunistas, socialistas e radicais. [Pedro Aguirre Cerda morre em novembro de 1941 e assume, até abril de 1942, Jerónimo Méndez. Em seguida é eleito Juan Antonio Ríos, que governa até junho de 1946.]

PC na clandestinidade

Tem-se portanto, entre 1938 e 46, um período conturbado de governos da Frente Popular. Ela não é bem aceita, existe resistência, existe tentativa de golpe, mas ela consegue navegar e chegar a 46. Em 1946 há novas eleições. Digamos, zera-se o jogo. Mas nessas eleições reproduz-se o esquema partidário da Frente Popular. Novamente correm juntos radicais, socialistas e comunistas, elegendo a figura de [Gabriel] González Videla. O Partido Comunista tinha três ministros de Estado no governo de González Videla, em 1946. Se não me falha a memória, foi a primeira vez que comunistas ocuparam ministérios, estiveram presentes no governo em países latino-americanos. Agora, tudo vai muito bem até que os ventos da guerra fria comecem a soprar, o que significa que em 1948 as coisas vão mudar, porque a pressão americana em cima do governo chileno é muito forte. Isto significa que houve um processo mais ou menos semelhante àquele que ocorreu no Brasil. González Videla demite os ministros comunistas. Depois, é cassado o registro do Partido Comunista, que vai para a clandestinidade. Depois, os deputados e senadores comunistas são cassados.

É um período de clandestinidade difícil, duro. O então secretário do Partido Comunista, cujo filho eu conheci em 1962, em Santiago, me hospedei na casa dele, chamava-se Ricardo Fonseca, esteve preso em Pisagua, que foi uma área também muito utilizada pelo Pinochet como campo de detenção de prisioneiros políticos. Em 1948, González Videla decretou uma lei chamada Ley del Embudo. Embudo em espanhol quer dizer funil. Ou seja, muita gente em cima, mas pouca gente passando.

[Pablo] Neruda tem um poema dedicado em especial homenagem ao González Videla, ele tinha ódio do González Videla. No Canto General, quando ele abre o ano de 1948 – abre, aliás, de uma linda maneira: ‘Mal año, Año de ratas, año impuro’ – há um poema em que González Videla é um indivíduo mau. Cachorro. Começa com uma aliança nomeando ministro comunista, depois abre as pernas para os Estados Unidos. Podia ter demitido os comunistas do governo e ter dito aos Estados Unidos: ‘Além disso eu não posso fazer, não posso ir’. Ele teria condição para isso e não fez. Teve que reprimir, teve que perseguir. Começa de um lado e acaba do outro, inteiramente diferente.

Então nós vamos ter um período governamental de González Videla que obviamente arrebenta com toda e qualquer possibilidade de manutenção da Frente Popular. É claro que do ponto de vista das condições internacionais a manutenção da Frente Popular estava bichada, impossibilitada, porque já não era mais a grande aliança internacional, a Guerra Fria já tinha começado. Mas não precisava ter batido no Chile da forma como bateu. Existe o fator pessoal de González Videla.

Ele governa até 1952 em circunstâncias que lhe são extremamente favoráveis.

Allende concorre pela primeira vez

Em 1952, na sucessão de González Videla, sobra apenas uma candidatura pela direita. O Partido Radical, seu partido, inteiramente desmoralizado, por causa do desempenho do presidente, que começa com uma abertura em direção à esquerda e depois fecha isso e vai se abrir em direção à direita. Os comunistas, na clandestinidade, não têm condição de apresentar um candidato a presidente. Não há candidatura nenhuma por outro lado porque a Democracia Cristã ainda é um partido fraco. Não tem condição de apresentar um candidato com chance de ser eleito.

Carlos Ibáñez pega um quadro eleitoral que lhe é extremamente favorável. Só um partido será capaz de apresentar candidato, o Partido Socialista, que apresenta Allende. Allende corre pela primeira vez em 1952. O resultado, ganha Ibáñez.

Ibáñez é um fenômeno político-eleitoral que corre por fora dos partidos conhecidos. [Era militar. Em 1927, substituiu o presidente Emiliano Larraín e governou como ditador até 1932; em 1952, foi eleito por uma coligação: Partido Agrario Laborista (PAL), Partido Socialista Popular e Partido Feminino do Chile.]

Ibáñez vai fazer um governo conturbado. Existe um certo número de tentativas de golpe contra ele, articulações partidário-militares. É um governo muito difícil. Coisa curiosa, que a História gostaria de registrar, o emblema dele durante a campanha eleitoral é uma vassoura, o mesmo que Jânio Quadros usará depois. Vai varrer a desgraça, a corrupção, a ladroeira que existe no Chile. Quem diria, quem diria! Nós nos encontramos de novo! É fantástico, isso!

A mesma porcaria. Na América Latina existe o fenômeno do contágio não só das epidemias, mas das desgraças políticas também. Esse Partido Agrário Laborista não é partido, é uma legenda arrumada de última hora, como nós conhecemos aqui no Brasil, como aconteceu recentemente com o Collor, em 1989… Não são coisas tão antigas assim. É um agrupamento. Meia dúzia de indivíduos se reúnem e fundam um partido, botam um nome eleitoralmente viável, elegem o sujeito. A diferença é que o sujeito não roubou tanto quanto o Collor, não recebeu impeachment.

Que ele teve muita dificuldade de governo, teve. É muita tentativa de golpe, vem uma pressão da esquerda, porque o Ibáñez não era querido pelo sistema partidário. A direita não gostava dele porque ele usurpou o lugar que devia ser da direita. Radicais, democratas cristãos não gostavam dele, viam nele um viés autoritário, com toda razão. E a esquerda, obviamente, também não gostava…

Mulheres ajudam o segundo Alessandri a derrotar Allende

Chega-se, portanto, ao cenário de 1958, onde se tem um enfrentamento que é mais clássico, esquerda contra direita, Allende contra Jorge Alessandri, sobrinho daquele velho Arturo Alessandri Palma. E se tem a vitória do Alessandri, por uma margem relativamente pequena, algo como 22 mil votos [Alessandri teve 31,2% dos votos, Allende teve 28,5%]. O eleitorado feminino descarregou maciçamente no Alessandri, que inclusive fez uma campanha baseada numa postura de machão. Solteiro inveterado, mulherengo, o mulherio gostou e elegeu Alessandri.

Esse foi o Chile que eu conheci em 1962, um país onde as liberdades democráticas estavam plenamente asseguradas. Eu visitei a sede do Partido Comunista, se não me engano ficava numa rua chamada Teatinos. Visitei a sede das JJCC – Juventudes Comunistas de Chile, a sede do Partido Socialista. Andei lá pelo Sul do Chile também, visitei os sindicatos mineiros. Não mineiros do cobre e de outros derivados, que isso é lá no Norte, mas um área carbonífera, em lugares chamados Lota e Talcahuano. Lugares interessantes, sem dúvida alguma.

O primeiro Frei derrota Allende

Em 1964, já num quadro de ação da Aliança para o Progresso – o governo americano jogou muito pesadamente no Chile nos quadros da Aliança para o Progresso, pela simples razão de que o Chile era o país da América Latina onde a esquerda era mais forte, onde o Partido Comunista era mais forte. Onde o Partido Comunista tinha uma média, quase consolidada, de 12% a 15% dos votos.

Ali apoiou-se a candidatura de Eduardo Frei [Montalva; 30 anos depois será eleito seu filho Eduardo Frei Ruiz-Tagle], com muito dinheiro jogado nas mãos do governo para os chamados benefícios sociais. Ganha Frei, novamente contra Allende, a terceira eleição de Allende, num momento até em que, se não me falha a memória, Allende declarou que encerrava a vida política, nunca mais ia concorrer à Presidência etc.

O governo do Frei transcorreu num período difícil da América Latina, muito difícil, porque já havia ocorrido o golpe no Brasil. Vai-se ter golpe argentino em 1966; golpe na Bolívia em 64; golpe no Peru em 68. Quer dizer, os países limítrofes do Chile se transformaram todos em ditaduras.

Frei pode ter tido todos os defeitos do mundo que lhe são imputados e mais alguns. A verdade dos fatos é que ele resistiu às diferentes tentações autoritárias. Manteve o Chile na trilha da democracia, com representação legal para comunistas, para socialistas, e com pleno reconhecimento do movimento sindical, direitos de greve. Essa faceta do Frei eu acho que é muito pouco mencionada.

Na época da vitória de Allende se dizia, rebatendo décadas para trás os períodos de Frei e Alessandri, que o Chile tinha uma vida constitucional consolidada, e não era verdade. Dizia-se ‘o Chile é estável, tem a democracia consolidada’. E aquela bobagem de dizer que as Forças Armadas não iam entrar etc.

A.C.P. – Pois é, em 1948 a Lei do Embudo sacaneou os comunistas do mesmo jeito que eles foram sacaneados no Brasil. A diferença é que eles tinham mais tradição na vida política chilena, já tinham concorrido a eleições, ajudando a eleger candidatos à Presidência, como é o caso do Pedro Aguirre Cerda, da Frente Popular Chilena, depois de Juan Antonio Ríos. Mas vê-se que a vida política chilena não é essa tranqüilidade, esse mar de rosas que normalmente se apregoa. Desde a queda de Balmaceda, há o período parlamentarista, um período de legalidade e de vida política aberta com Arturo Alessandri, 1920 a 25. Entre 1925 e 1938 tem-se uma zorra [a Universidade do Chile oferece uma cronologia aqui; clicar em Cronologia, no alto da página], até que novamente o Chile se estabiliza com a Frente Popular, em 1938.

A partir daí há a morte do Pedro Aguirre Cerda, em 1941, que acaba abrindo uma crise de governo; tem tentativas de estabilização, depois tem Juan Antonio Rios até chegar a 1946. Em 46 acredita-se que há uma estabilização, provavelmente definitiva. Droga nenhuma, em 48 a zona volta, aí já pelos influxos da Guerra Fria. A Lei Maldita, conhecida popularmente no Chile como Lei do Funil. Quer dizer, os comunistas vão para a ilegalidade, os quatro anos finais do governo de González Videla são anos de repressão, difíceis. Os socialistas escapam, mantêm o seu perfil de partido legal, mas a situação é difícil. Em 1952 entra um louco, e um de viés autoritário, que já tinha sido meio presidente, meio ditador, Ibáñez.

Quer dizer, a normalização da vida política chilena, na realidade é um processo que vai de 1958 a 1970, pega as eleições de 58, de 64 e de 70.

Vitória apertadíssima de Allende

E depois seria truncada longamente…

A.C.P. – Em 1970, tem-se uma vitória apertadíssima de Allende sobre o mesmo Jorge Alessandri que tinha sido presidente em 58. É uma vitória por 36,6% [1.075.616 votos] a 34,9% [1.036.278], e Radomiro Tomic [da Democracia Cristã] teve 27,8%. Um dia antes das eleições ninguém tinha certeza de que Allende iria ganhar de Alessandri. Houve uma grande chance de Alessandri ganhar. Talvez o que aconteceu não tivesse acontecido. Talvez a esquerda chilena fosse passar por um período mais ou menos repressivo, mas obviamente sem a brutalidade e sem o número de assassinatos e mortes que ocorreram entre 1973 e 1989.

É preciso ser dito que um segmento da esquerda jogou gasolina na fogueira.

A.C.P. – Mas isso foi depois do Allende assumir.

Exatamente.

Divisão no Partido Socialista

A.C.P. – Até onde eu percebo as coisas, houve dois fatores que complicaram demasiadamente a guerra. Eu até ressalvo nesse caso a postura do Partido Comunista, um partido que normalmente anda errado, mas no caso chileno andou certo. Fez o possível para evitar radicalizações absolutamente desmedidas do governo Allende.

Ali houve em primeiro lugar uma figura que jogou para o mal, o secretário geral do Partido Socialista, Carlos Altamirano. Eu não digo isso porque eu ache, não. Eu participei de duas reuniões onde Altamirano se encontrava. Uma delas foi na própria Sciences Po [‘Po’ por ‘Politiques’; instituição universitária sediada em Paris], um grupo reduzido de pesquisadores presentes, uns seis ou sete, e Altamirano; e outra, houve um encontro para comemorar não sei se era aniversário da eleição do Allende, um ato conjunto dos socialistas e dos comunistas franceses em que Altamirano esteve presente. E nas duas ocasiões eu ouvi uma autocrítica extremamente clara de Altamirano. Ele dizia o seguinte: eu, a partir de uma posição de esquerda, imprensei o companheiro Allende.

Ele quis dizer o seguinte: Allende, você está na direita. Allende, você tem que ir para a esquerda. Ou seja, ele estigmatizou o governo do Allende o tempo todo como sendo um governo de direita. Rompeu a unidade do Partido Socialista em torno do Allende. Ele cindiu o Partido Socialista. Foi uma coisa trágica. Ele quis disputar a liderança do Partido Socialista com Allende, e isso foi mortal para Allende.

No final das contas Allende encontrava um Partido Socialista dividido e o grande sustentáculo dele era um partido que não era o dele, o Partido Comunista. Esse posicionamento de Altamirano foi uma coisa sinistra, que arrebentou o Partido Socialista. O Partido Socialista perdeu capacidade de ação devido à divisão interna. Uns diziam que Allende estava na direita; outros diziam que Allende estava certo…

Reagrupamento à direita

Enfim, o negócio foi muito complicado. Os radicais tinham saído de cena pela débâcle eleitoral de Julio Durán com 5% dos votos nas eleições de 64. Havia o Partido Nacional e a Democracia Cristã, que, dada a radicalização das coisas, foi se encaminhando cada vez mais para uma aliança de ação, tática, de momento, com o Partido Nacional. [O Partido Nacional foi fruto da fusão, em 1966, dos partidos Liberal, Conservador Unido e Ação Nacional. Em 70, Jorge Alessandri, quando concorre à Presidência pela segunda vez – da primeira vez foi eleito –, já é candidato do Partido Nacional.] Esse é o segundo fator que complica a vida de Allende.

Costumava-se dizer que a democracia política era consolidada no Chile, mas não era.

A.C. P. – Não era. Basta olhar a história do Chile, desde Balmaceda, presidente derrubado que se suicidou, o Chile diluindo poder numa reforma parlamentarista para evitar atritos com a Presidência da República e depois, nos anos 1920, tudo se tumultuou.

A história do Chile melhora nos anos 1940. Com González Videla entra numa certa normalidade, tirando o fato de que em 48 ele joga o PC na clandestinidade. Ibáñez é uma excrescência, mas ganhou, foi eleito.

Eu conheci bem um chileno chamado Sergio Spoerer Herrera, que fez uma tese de doutorado no Instituto da América Latina mostrando justamente o tumulto do governo do Ibáñez, inclusive o número de levantes militares contra Ibáñez. A confusão militar foi total.

Dizia-se que as forças armadas chilenas são constitucionais, são direitas, não dão golpe. Não é bem assim, o tumulto foi muito grande.

Agora, entre 1958 e 70 as coisas funcionaram. Alessandri foi eleito em 58; Frei foi eleito em 1964, com um grande apoio dos Estados Unidos e muito dinheiro da Aliança para o Progresso.

Aliança com DC teria isolado a direita

A eleição do Allende é complicada. Ganhou por uma maioria extremamente tênue, o que mostrava que Allende tinha de ter governado levando em conta principalmente a Democracia Cristã. Se ele consegue montar um pacto com a Democracia Cristã, ele teria, digamos, uma base eleitoral de mais de 60%. Com isso poderia aprovar algumas medidas que a direita, quer dizer, o Partido Nacional, não aceitaria, mas de qualquer modo ele teria o respaldo do centro democrata cristão, já que os radicais estavam muito por baixo.

Ora, isso não ocorreu. Curiosamente, uma situação que não é formalmente semelhante, mas é politicamente semelhante ocorre no Brasil com a subida do Jango ao poder. Ali se supunha que era possível governar o Brasil como se Jango fosse presidente. Tecnicamente ele era presidente. Política e eleitoralmente, não era. Porque a coligação de forças chamadas nacionalistas, progressistas, sei lá que diabo chamar, tinha sido derrotada. Jango no poder teria de significar um entendimento com o PSD para poder isolar a UDN. O Allende no poder teria que significar um entendimento com a Democracia Cristã, de modo a isolar a direita, o Partido Nacional.

Há uma certa similaridade entre as duas situações. Allende era um presidente eleito, legitimamente eleito, mas você se lembra daquela famosa frase do Berlinguer, no momento da derrubada do Allende, clássica: ‘Não se constrói socialismo com 51% dos votos’. Menos ainda com 36 e alguma coisa. Dois anos depois das eleições presidenciais realizam-se as chamadas eleições intermediárias, municipais. O Chile, na época, era uma República totalmente centralizada, o presidente da República nomeava os governadores das províncias.

As cidades tinham os seus cabildos, as suas Câmaras Municipais e seus prefeitos. Havia uma tendência, quase uma constante no processo eleitoral chileno, segundo a qual, nessas eleições intermediárias, o governo eleito dois anos antes perdia. Talvez não perdesse em números absolutos, mas diminuía o peso de sua votação e as oposições cresciam.

Nessas eleições de 1971, ao contrário, a Unidade Popular subiu. Ela passou de 36,6% para 50,8% dos votos. Isso mostra que, a despeito de todos os problemas, a Unidade Popular estava em processo de consolidação.

Tratada como inimiga, DC cai no esquema do golpe

Nem com essa vitória o governo de Allende conseguiu ampliar suas alianças.

A.C.P. – O pacto com a Democracia Cristã foi impossível porque o próprio Partido Socialista não permitiu isso a Allende. Ele não deu área de manobra a Allende para procurar uma saída dessa natureza. A idéia era tratar a Democracia Cristã como inimiga. Mutatis mutandi, a Democracia Cristã jogou no Chile o mesmo papel que o PSD havia jogado aqui no Brasil. A partir de um certo momento o PSD foi tratado como inimigo. Resultado, ele caiu no esquema do golpe. No final de 63, ele já estava alinhado no esquema do golpe, porque tudo que Juscelino queria era uma garantia firme, dita pelo Sr. João Goulart, de que em 1965 haveria eleições. Isso nunca foi dito pelo Jango.

Ora, a Democracia Cristã foi tratada como inimiga, foi empurrada para a direita, aí caiu no esquema do golpe. A partir de algum momento ela achou que não havia outra saída a não ser o golpe. E a Democracia Cristã era importante porque ela tinha forte penetração nas camadas médias das principais cidades chilenas, principalmente Santiago. Quer dizer, a mobilização, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, no caso chileno, foi uma questão da Democracia Cristã. Os panelaços.

Pesada interferência americana

É claro que a interferência americana foi muito forte. [Henry] Kissinger inclusive avisou: não haverá uma nova Cuba. Em 1972, Allende foi à União Soviética. Ele estava sem divisas e pediu um crédito de 500 milhões de dólares à União Soviética. É claro que 500 milhões de dólares há quase 35 anos atrás valiam muito mais do que hoje. Mas, de qualquer modo, não era uma quantia que fizesse a União Soviética sangrar. E a União Soviética não concedeu. Por quê? Era uma questão econômica, financeira? Ela não tinha essas divisas? Tinha. Mas o que ela não quis foi dar um balão de oxigênio a um regime sobre o qual os Estados Unidos já tinham dito: ‘Nós não aceitamos essa agenda’. A União Soviética não quis comprar uma briga com os Estados Unidos, acatou mais ou menos o que Kissinger já tinha dito: não haverá uma segunda Cuba. Como quem diz à União Soviética: não metam as patas de urso aqui. Deixem-nos lidar com isso.

Radicalização, divisão, os golpistas passam da política à selvageria

E aí começou. Veio a primeira greve dos caminhoneiros. Veio a segunda greve dos caminhoneiros, que foi mais pesada; veio o desabastecimento e, em algum momento, se teve um país realmente rachado, dividido ao meio. Nas eleições parlamentares de 1973 a Unidade Popular conseguiu 43,4% dos votos. Entre os que votaram na oposição deve ter havido um percentual de gente que, ainda que contra a Unidade Popular, não queria o golpe, não aceitava o golpe de Estado.

Depois veio o racha dentro das Forças Armadas. [O general Carlos] Pratt acabou sendo demitido. Pinochet assumiu o comando, e por tudo que se sabe ele já assumiu o comando para montar o golpe. E veio o golpe. Tecnicamente falando, a verdade dos fatos é que esse golpe tinha de ser sangrento. Não se poderia pegar um país que estava saindo do governo de uma coligação socialista-comunista, com um segmento da população muito numeroso altissimamente mobilizado, e fingir que nada disso acontecia, dizer: ‘Olha, pessoal, eu só vim aqui para tirar o Allende do poder, mas tudo vai continuar como antes…’ Aquele negócio tinha de ser sangrento, não havia saída.

O da Argentina já tem menos explicação, Videla não precisava chegar, de modo nenhum, ao ponto que chegou. Aquilo foi uma boçalidade própria da doideira portenho-argentina.

Agora, no caso chileno – tudo bem, não precisava ter havido o nível de tortura que houve, coisa nenhuma –, mas que ia morrer muita gente, ia. Não se tenha a menor dúvida. Não tinha como não morrer, porque se as coisas fossem na base do docinho de coco, as chamadas massas populares organizadas pelos partidos da coligação de esquerda iam para a rua. Quer dizer, ia ter um confronto pesado.

Eu acho que todo o problema do Chile foi a incapacidade, primeiro, de conter a esquerda, no caso do MIR; segundo, de Allende não conseguir controlar o Partido Socialista, e aí existe o que se chama hoje no Brasil, essa gíria que tenho horror, a fulanização. Aí o negócio é fulanizado, mesmo, é Carlos Altamirano. Esse indivíduo jogou um papel ruim. Jogou um papel do mal. Não jogou um papel do bem. Ele imprensou Allende, tirou área de manobra de Allende dentro do Partido Socialista, pressionando-o o tempo todo. E, por causa disso, não se conseguiu chegar a um acordo, a um pacto de governabilidade, como se diz hoje em dia, com a Democracia Cristã.

Temor legítimo de bolchevização

O resultado não podia ser diferente. Nacionalizou coisa que não era para nacionalizar. Nacionalizar a mineração, nacionalizar o cobre, tudo bem… Nem o Pinochet privatizou, depois. Mais do que isso, o orçamento do Ministério da Defesa chileno sai da Codelco [Corporación Nacional del Cobre de Chile]. Sai do dinheiro que o Chile apura com a venda do cobre [10% das vendas, segundo lei aprovada em 1989].

Ninguém se incomodaria com isso, a própria direita chilena aceitou, até porque a grande minería estava em mãos americanas; a minería mediana e a minería chica, isso não era gente que tivesse um grande poder de fogo, um grande poder de pressão dentro do sistema político chileno. A direita grunhiu, mas não houve muito problema. [O processo de estatização do cobre começou no governo anterior, de Eduardo Frei.]

Mas quando se começou a nacionalizar, a estatizar – aí não é nacionalizar, é estatizar –, propriedade privada dos poucos grupos industriais que o Chile tinha, realmente começou a grita porque o temor da bolchevização era um temor legítimo. Quer dizer, vai acabar a propriedade privada. Não teve saída.

Só o filé mignon para grupos privados

E houve um golpe que levou a profundas transformações na economia. Transformações que, do ponto de vista do senso comum, inclusive da imprensa, deram certo: a idéia de que hoje o Chile é um país organizado do ponto de vista econômico, financeiro, etc., porque o governo de Pinochet efetuou grandes transformações. O neoliberalismo teria começado no Chile, o governo ficou infestado de Chicago boys, e deu tudo certo.

As coisas não foram bem assim. O governo foi esperto. Foi inteligente, não foi burro. Privatizou uma porção de coisas. Mas privatizou como? Ele pegou alguns grupos que tinham sobrado, que não eram fortes, eram fraquíssimos, que tinham sido sangrados pelas estatizações ocorridas com Allende, e dividiu um bolo. Tinha um bolo da estatização. Ele dividiu esse bolo entre quatro ou cinco grandes grupos, que se tornaram grandes grupos privados.

Ele entregou e o Estado ficou com os débitos, com o passivo desse negócio. O Estado serviu para financiar a tal da privataria, como diz o Elio Gaspari. Ele loteou todo o setor estatal, ou o que ele achou que tinha de ser devolvido ao setor privado. O cobre se manteve estatizado, talvez algum outro setor, e o resto foi doado ao setor privado, sem dívidas. O Estado chileno arcou com todas as dívidas e disse: peguem esse filé mignon, não tem gordura nem nervo. É pura carne macia. E pronto.

Esses grupos, rapidamente, na medida em que pegaram nacos de suculenta carne, sem um tostão de dívida, puderam ir ao mercado financeiro com uma alta capacidade de empréstimo. E se tornaram grupos extremamente poderosos.

Investimentos na produção de papel

Segundo, o movimento internacional de investimentos que houve no Chile foi bem-sucedido. O Sul do Chile é uma área florestal. Floresta tipo européia, de clima temperado. Excelente para uma indústria de papel. Aquilo foi transformado organizadamente, não houve a devastação que há na Amazônia, até porque a área é muito menor em tamanho, o abate de árvores foi racionalizado, grupos estrangeiros entraram nisso. E o Chile se transformou num grande exportador de papel. Uma coisa que poderia ter sido feita desde muito antes. Não sei por que não foi. O mercado internacional dormiu, o Chile também dormiu, não viu a potencialidade daquilo.

E alguns setores de exportação foram racionalizados. O Chile exporta papel, pescado, frutos do mar enlatados. Houve uma racionalização da indústria pesqueira e do processamento dessa indústria e da exportação. O Chile exporta vinhos. Houve uma capitalização do setor vinícola do Chile. Exporta fruta tipo européia, fruta mediterrânea. E exporta minério.

Renúncia à industrialização

Na medida em que esses setores se organizaram como setores exportadores, houve, não sei se isso foi intencional, se alguém, um corpo coletivo, algumas pessoas visualizaram esse negócio e tomaram uma decisão, mas o Chile desistiu de um projeto industrial. Essa foi a grande transformação que ocorreu no Chile. Ele racionalizou a exportação das commodities, capitalizou o setor privado nesses cinco ou seis grandes grupos, de tal modo que o setor privado não tivesse que viver o tempo todo mamando nas tetas do Estado. Com o tempo o Estado foi enxugando os débitos dos antigos setores estatais que foram reprivatizados, entregues a esses cinco ou seis grandes grupos.

Muito se falou a respeito da Previdência Social no Chile.

A.C.P. – Mais uma vez o Estado entrou. A questão previdenciária no Chile foi resolvida não por grandes planos mirabolantes de privatização, mas porque o Estado chileno bancou, garantiu o êxito de um projeto previdenciário. Ele adotou um sistema previdenciário segundo o qual o Estado sairia da Previdência, a Previdência seria toda privatizada. Mas como? Durante quinze anos as pessoas que iam se aposentar pagavam ao setor privado, e o Estado é que garantia toda a Previdência dessas pessoas. O setor previdenciário privado teve uma bruta capitalização sem despesas. Durante quinze anos ele não teve que garantir a aposentadoria de ninguém…

Das pessoas que já estavam aposentadas ou iam se aposentando naquele período…

A.C.P. – Exatamente. Isso o Estado garantia. O setor privado recebeu uma grana preta sem tirar um escudo do bolso. Só se capitalizou. Esse dinheiro da capitalização podia ser aplicado no mercado financeiro, inclusive na Bolsa de Valores. Mas, antes, eles foram proibidos de investir nos mercados financeiros internacionais, nas Bolsas de Valores de fora do Chile, e dentro do Chile eles só podiam comprar ações das chamadas blue chips, o que mostra a força do Estado chileno inclusive durante o governo de Pinochet. Não podiam comprar ações especulativas, porque de repente dava um rombo em duas ou três empresas dessas, o sistema previdenciário inventado pelo Estado chileno ia para o beleléu.

Essa é que foi a história. Ação do setor privado, o Estado assumindo débitos, uma racionalização do setor exportador de commodities, o que implicou, na prática – eu repito, não sei isso foi intencional –, uma desistência de transformar o Chile num país industrializado, que era, obviamente, o projeto de Allende. A esquerda adora industrialização. A industrialização é progresso. Um país só é forte quando é industrial. E, na prática, o Chile desistiu, E, em último lugar, um projeto previdenciário que deu certo.

Pobreza brava

Dizer que tudo é uma maravilha? Não. A pobreza no Chile é brava. Os dados estão aí mesmo. Qualquer estatística da Flacso [Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales], da Cepal, vai dizer isso.

Eles já têm uma classe média razoável ou estão como o Brasil, onde o peso relativo da classe média ainda é pequeno?

A.C.P. – Eles têm uma classe média razoável. Mas já tinham. O Chile já era um país com leis, com sistema de proteção social. Eu me lembro de uma vez estar conversando com Celso Furtado em Paris, e ele me disse o seguinte: ‘Eu fiquei assombrado quando eu cheguei ao Chile, nos anos 40′ – ele chegou na época do governo de González Videla, creio que foi em 1947 – e nós fomos ver uma empregada, e a empregada tranqüilamente nos apresentou uma documentação para nós assinarmos, uma documentação que equivalia à Carteira de Trabalho aqui no Brasil.’

Quem é que nos anos 40, aqui no Brasil, assinava carteira de trabalho de empregada?

Isso não existia…

A.C.P. – Foi legislação, é bom até frisar, da Frente Popular, de Pedro Aguirre Cerda. Já havia um sistema de proteção social que datava dos anos 30 e que González Videla obviamente não desmanchou. A população, teoricamente, não tem que ser punida porque os comunistas foram para a clandestinidade.

Chile e Estado do Rio, a diferença é a distribuição de renda

A.C.P. – Deu para arrumar mais ou menos, deu uma certa saúde financeira ao Estado chileno, quem está incluído no sistema tem um padrão de vida bem razoável, e está lá o país. A economia do Chile é hoje mais ou menos do tamanho da do estado do Rio. As populações também são muito semelhantes. O Chile tem uns quinze milhões de habitantes, o Estado do Rio tem catorze e tantos. São quase nove mil dólares de renda per capita [dados de 2006]. No Estado do Rio ela é muito mal dividida, bem pior que no caso chileno. No Chile é mais bem dividida, apesar de os índices de pobreza lá chegarem a mais ou menos 30%.

Existia uma expectativa de avanço social com os governos da Concertación que foi frustrada, em parte.

A.C.P. – Não é uma situação confortável. E isso os governos da Concertación não puderam melhorar muito. Nem [Patricio] Aylwin [1990-94], nem [Eduardo] Frei [Ruiz-Tagle, 1994-2000] nem [Ricardo] Lagos [2000-06]. [Michelle] Bachelet entrou [2006] dizendo que era a primeira preocupação dela…

Ação política lúcida pela democracia

Voltemos ao processo de superação da ditadura.

A.C.P. – Na política, os anos 1970 são de repressão. Os anos 1980 são de uma retomada da pressão pela democracia. Eu acho que as coisas foram bem conduzidas. Como aqui no Brasil. E eu acho que a comparação é com o Brasil, porque na Argentina a ditadura, embora já estivesse em crise, caiu de golpe por causa da Guerra das Malvinas. A Guerra das Malvinas acelerou o processo de desagregação do regime.

No caso chileno não houve um acontecimento. As coisas continuam complicadas até certo ponto nos anos 80. Houve uma tentativa de matar Pinochet [7 de setembro de 1986, atentado feito pela Frente Patriótica Manuel Rodriguez, FPMR]. Um dos integrantes do grupo era até casado com uma brasileira. A mulher foi localizada na casa onde eles moravam e custou a morrer. Consta que abateu uns tantos policiais. Parece que era de briga, mesmo. Era uma exilada que casou com um homem de esquerda e ficou na clandestinidade, não saiu do Chile.

Existe uma lenta rearticulação das forças de esquerda, socialistas e comunistas, e também da Democracia Cristã. São os três principais atores. Com a diferença de que dessa vez a Democracia Cristã está dentro de uma frente que luta pela redemocratização, questão que é chave.

O que se chama hoje de Concertación, o acordo base que estrutura o sistema político chileno, entre socialistas e democratas cristãos, não foi gestado do dia para a noite, mas nesse processo dos anos 80, de rearticulação das forças que se movimentam pela retomada da democracia.

Países que tiveram esse tipo de acordo, me ocorre a Espanha, acabaram se dando bem.

A.C.P. – Exatamente.

No primeiro plebiscito, Pinochet ganhou

O Brasil ainda está devendo. Mas está tudo aberto. A possibilidade está aberta, não tem nada fechado.

A.C.P. – Não, realmente não tem. Agora, há um outro dado também que é bom relembrar quando se fala da heróica luta do povo chileno pela democracia. Em 1980, Pinochet propôs uma Constituição ao povo chileno, por plebiscito, e o povo chileno aceitou. E ninguém votou obrigado. Mesmo num país de 12 milhões de habitantes – na época, hoje são 15 milhões, o crescimento é lento – não se obriga as pessoas a votarem debaixo de baionetas. Não tem baioneta dentro da cabine de voto para ver como a pessoa está votando. Eles aceitaram a Constituição.

Eu chamo a atenção para esse fato porque houve um fato análogo, só que com resultado diferente, no Uruguai [no mesmo ano de 1980; um projeto de reforma constitucional apresentado pela ditadura foi rechaçado]. O povo uruguaio disse não à Constituição.

A partir do momento em que um regime coloca em jogo o seu fundamento legal, que é uma Constituição, e o povo diz não, o povo não precisa fazer mais nada, aquele regime vai cair, não vai ter saída. O povo uruguaio disse não, mas o povo chileno disse sim.

Isso mostra que existe uma direita politicamente organizada e forte no Chile. Essa direita se manifestou. Está certo que um percentual da população pode ter votado por oportunismo, mas um outro percentual não votou por oportunismo, votou porque acreditava…

Em 1988, há um novo plebiscito e aí realmente Pinochet teve de entregar a rapadura. Mas teve de entregar a rapadura dentro de uma Constituição que era dele, com uma série de trambiques, segundo os quais havia senadores vitalícios, que ele mesmo indicou, ele continuou sendo o comandante em chefe das Forças Armadas, era senador. E com uma votação a favor muito significativa [57% disseram não e 43% disseram sim à permanência de Pinochet no poder]. Na época, encontrei no Rio dois chilenos que me disseram estar com medo de que o sim fosse vitorioso. Até um mês antes havia muito nervosismo nas fileiras oposicionistas.

Enfim, muito lentamente, dentro da chamada Concertación, sem uma oposição feroz do Partido Comunista – o Partido Comunista também entendeu que não adiantava cutucar a onça nem com vara curta, nem com vara longa. Deixa a onça para lá e vamos cuidar dos nossos negócios aqui.

Democratização lenta

Essas excrescências da vida institucional chilena foram sendo depuradas, com muita lentidão… Por exemplo, o divórcio. O divórcio no Chile é uma coisa recentíssima.

Os senadores vitalícios caíram há relativamente pouco tempo. Durante todos os anos 90 e entrando pelo século 21, o Chile conviveu com essa excrescência de senador vitalício. Imunidades para Pinochet – felizmente aquele juiz espanhol, o Baltasar Garzón, que é o protagônico, gosta de holofote, parece esse Marco Aurélio Melo aqui no Brasil –, botou o dedo na ferida. Para chamar a atenção sobre si mesmo, mas ele ajudou a resolver um problema, que eram as imunidades de Pinochet. O governo chileno se aproveitou disso e lentamente foi comendo as imunidades de Pinochet pelas bordas.

A percepção da esquerda responsável no Chile é de que o combate pela democracia continua, mas não é como para nós, aqui no Brasil, o aperfeiçoamento, o aprofundamento da democracia. Não é. É construir um pacto constitucional que seja democrático, ver se ainda há problemas a serem solucionados.

Última coisa, tem havido alguns comentários de imprensa segundo os quais com o governo da [Michelle] Bachelet a Concertación está fazendo água, está se desmanchando… Não há dúvida de que há alguma erosão, alguma gastura. O tempo obviamente cria problemas, mas pessoalmente eu acho muito cedo para dizer que as relações dentro da Concertación já estão nesse ponto que a imprensa vem mencionando. Eu vi duas matérias no Globo, recentes [a entrevista foi feita em abril de 2007], sobre corrupção no governo da Bachelet… Corrupção tem em tudo quanto é lugar do mundo! Vamos parar com isso! Não é uma coisa escabrosa. Certamente é bem menos do que aqui no Brasil. E não é só pelo tamanho da economia. É porque os costumes políticos são mais organizados. Também há isso. A Concertación, neste começo do século 21, vem trabalhando para eliminar as excrescências da ditadura, o legado ditatorial. A imprensa está exagerando um pouco em relação à Concertación. Parece aquela velha história de abutre em cima de carniça. Mas ainda não é carniça, ainda tem carne muito fresca.

(Transcrição de Maria Almeida)

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Jornalista