Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Cinefilia à mostra

O cinema chegou ao Brasil há 117 anos numa engenhoca chamada Omniographo, que no ano seguinte mudou de nome para Animatógrapho, depois Cineógrapho, e foi virando Vidamotógrapho, Biógrapho, Vitascópio, Cinematógrapho. A magia era grande. A primeira sala, instalada no coração do velho Rio em 1897, à Rua do Ouvidor, era o Salão de Novidades. De lá para cá ganhou tantas salas que acabaram desativadas, animadas por uma infinidade de películas que se apagaram para sempre, incluindo 90% de filmes mudos que a digitalização tenta salvar. Os cinéfilos sofreram perdas que os EUA e a Europa amenizam em festivais cult e, no Brasil, nos novos Salões das Novidades.

O mais recente vai reabrir, com outro nome. A 37ª Mostra Internacional de Cinema vai recomeçar em São Paulo coincidindo com o final do Festival do Rio, que espalhou 350 cópias pela cidade. Entre Rio e São Paulo, um presente de quase dois meses aos amantes do Ommiógrapho, cansados do lixo agregado a cada título que-vale-a-pena adquirido no país, uma prática antiga. Em São Paulo, a Mostra vai de 18 a 31 de outubro, com selinho desenhado em 1975 na Irlanda durante as filmagens de Barry Lindon por Christiane, mulher de Stanley Kubrick, que vai ganhar retrospectiva, exposição e livro. O selo reproduz a figura do diretor e um de seus atores conversando na chuva.

A maior novidade é a abertura com o filme que levou o Grande Prêmio do Júri em Cannes este ano, Inside Llewyn Davis, de Joel e Ethan Coen, uma nostalgia sobre um jovem e seu violão que só toca folk music no Greenwhich Village nova-iorquino em 1961. Foi o ano em que os Estados Unidos se preparavam para enviar tropas ao Vietnã, como fizeram de 1965 a 1975, e os geniais irmãos Cohen captaram na figura do jovem símbolo dos anos 1960 os ideais logo solapados pelo capitalismo selvagem.

No ano de 1961 os filmes demoravam pelo menos um ano para chegar ao Brasil. Os cinéfilos babavam quando uma notícia ou outra anunciava a revolução da nouvelle vague na França, os últimos filmes de Bergman na Suécia (Através do Espelho), de Kurosawa no Japão (Yojimbo), de Antonioni (À Noite), e a vasta produção dos americanos. Estes últimos extrapolaram com Bonequinha de Luxo (Blake Edwards), Cupido Não Tem Barreiras (Billy Wilder), Os Desajustados ( John Huston), West Side Story (Amor, Sublime Amor, de Robert Wise e Jerome Robbins). Tudo isso só no ano de 1961.

Assistir ao filme de Joel e Ethan Cohen é uma volta ao tempo em que comprávamos livros e publicações sobre os filmes que ainda não podíamos assistir no Brasil, só discuti-los, e amargar a ideologia dos anos 60 que se perdeu. A Mostra só vai reservar um dia para Inside Llewyn Davis.Depois é esperar pela exibição nas salas de um filme que não é popular nem dirigido às novas classes emergentes – portanto, com baixa bilheteria.

Chance para rever

Outra novidade é o encerramento com a homenagem de Ettore Scola a Fellini, Que Estranho Chamar-se Federico,misto de ficção e documentário, título pescado de um verso do poeta espanhol fuzilado pela ditadura de Franco, Federico García Lorca: “Entre los juncos y la baja tarde, que raro que me llame Federico”. Kubrick, em 1961, eleito pelos irmãos Cohen e a abertura da Mostra, ainda estreava o seu Lolita que também custou a chegar ao Brasil. No Festival de Veneza deste ano, a homenagem de Scola, que foi convidado para a Mostra, fez muita gente chorar – ao que Scola, 82 anos, reagiu: “Não fiz um filme para chorar, Federico era um homem da alegria”.

As novidades pipocam ao longo das exibições, como o longa proibido, dado por desaparecido e proibido pelos nazistas, Nathan, o Sábio, de Manfred Noa (1922), que trata da guerra religiosa durante a Terceira Cruzada na Jerusalém, no século 12. A guerra entre judeus, muçulmanos e cristãos terminou com a união de todos graças a um judeu, Nathan. O ator Werner Krauss (O Gabinete do Dr Caligari, 1920) faz uma de suas melhores atuações. Será exibido na sessão ao ar livre no parque do Ibirapuera.

E tome novidade. Aos 80 anos, Eduardo Coutinho ganha retrospectiva exibindo o documentário Cabra Marcado Para Morrer, sobre a vida do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado na Paraíba, em 1962. Ofilmefoiinterrompido depois do golpe militar, teve parte da equipe presa como “comunista”, mas 17 anos depois o documentário acabou retomado pelo cineasta. Com roteiros originais, de Coutinho também serão exibido Edifício Máster, comentrevistas de moradoresnum prédio de classe média baixa típico de Copacabana; Peões, focando os metalúrgicos que acompanharam o então sindicalista Lula, e mais 19 produções, todas antecedidas pelo último curta de Coutinho, Porrada,uma exigência do diretor.

Raridades nas salas de cinema comerciais do país, os filmes do cultuado Lav Diaz, cineasta independente e crítico da política e sociedade de seu país, Filipinas, serão exibidos com uma homenagem ao diretor de Noite, o Fim da História; Melancholia; Morte da Terra dos Encantos; Nu Sob o Luar. Seu filme mais aclamado, que levou 12 anos para finalizar, não virá pelo motivo óbvio de ter quase 11 horas de duração, um dos mais longos da história do cinema,Evolução de Uma Família Filipina.

Dos 1.500 filmes inscritos na Mostra, serão exibidos 372 de 50 países. A maioria, o brasileiro nunca verá numa sala comercial. Há mais de 70 novos cineastas, clássicos de Yasujiro Ozu (que inspirou de Kurosawa) a Wim Wenders, o israelense Amos Gitai com 16 filmes e AnaArábia, prêmio do Festival de Veneza deste ano. E para reavivar a memória dos anos 1960-70, filmes que vão de Os Fuzis de Ruy Guerra, focando a seca na Bahia e um grupo de esfomeados tentando saquear uma cidadezinha do interior, a O Caso dos Irmãos Naves, de Luis Sergio Person, sobre um dos maiores erros judiciais do país, responsável pela tortura de dois agricultores, o estupro de suas mulheres, a prisão da mãe e a condenação a 25 anos de prisão – quando o primo Benedito, supostamente morto pelos irmãos, reapareceu anos depois, em Minas Gerais, vivendo bem com o dinheiro roubado dos dois. Uma chance de rever Anselmo Duarte, Juca de Oliveira, Raul Cortez, John Herbert e Lélia Abramo atuando há quase meio século (o filme de Person é de 1967).

Momentos raros

O Rio de Janeiro sediava a Hollywood tropical nos anos 1940, até o começo dos 50, com as chanchadas da Atlântida – 18 filmes só em 1949. Foi quando o polo cinematográfico começou a se transferir para São Paulo, com a inauguração dos estúdios Vera Cruz, em São Bernardo do Campo. Ali onde o industrial Francisco Matarazzo Sobrinho alimentava uma vasta criação de galinhas tornou-se o maior estúdio cinematográfico brasileiro, cobrindo uma área de 101 mil metros quadrados com seis palcos de filmagens, oficinas mecânicas, carpintarias e apartamentos residenciais para atores, diretores, produtores. Uma promissora Cinecittà.

De 1949 a 1954, quando fechou as portas, a Vera Cruz produziu 18 longas e alguns documentários, enterrando 150 milhões de cruzeiros em investimentos, 100 milhões em filmes nem sempre terminados. Isso sem contar com a dívida de 11 milhões com os funcionários, e 14 milhões com a Columbia – que distribuía os filmes e, para se compensar, acabou embolsando todo lucro obtido com O Cangaceiro, uma bolada. O Cangaceiro, de Lima Barreto, rodado em 1953, foi o único filme de sucesso internacional da Vera Cruz. A dívida era impagável. O capital inicial da companhia, de 7,5 milhões de cruzeiros, já era considerado uma fortuna na época. Hoje, com patrocínio e recuperação digital, conseguimos ver algumas raridades, tanto da produção paulista como as chanchadas cariocas. Mas é preciso sorte.

Por isso, de Salão das Novidades em Salão das Novidades o leitor precisa focar os olhos na imprensa em todos os suportes – rádio, TV, jornal, internet – para não perder o que pode ser sua única chance de assistir a um filme-marco. O Rio já terá terminado as apresentações, mas São Paulo promete 15 dias com repescagem dos melhores para não deixar escapulir nada. É a oportunidade de vivenciar momentos culturais corriqueiros no Primeiro Mundo, mas ainda raros por aqui.

Como acontecia nos anos 1960, continuamos babando (¡hasta cuando!) por exibições que só acontecem lá fora, ou nesses Salões das Novidades. Não perca.

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Norma Couri é jornalista