O resultado da auditagem da circulação paga do Diário do Pará pelo IVC, se confirmado, revela uma redução significativa do interesse do público paraense por jornais. A crise da mídia impressa é universal, afetada principalmente pela internet. Mas assume dimensão grave no estado. Por quê?
Lê-se cada vez menos jornal no Pará? Esta é a grande questão suscitada pela auditagem que o Instituto Verificador de Circulação fez no Diário do Pará, em outubro do ano passado. Embora destaque o fato de ser o único jornal do Pará (e um dos dois únicos da Amazônia) auditado pelo IVC, o Diário não divulgou até hoje os resultados do levantamento. Uma fonte com acesso às planilhas informou que a maior circulação paga do jornal, aos domingos, alcança apenas 25 mil exemplares, 20 mil dos quais em Belém. Nos dias da semana os números variam entre 21 mil e 23 mil exemplares.
São números surpreendentemente baixos para expectativas criadas pela propaganda da imprensa paraense. O Liberal anunciou, durante vários anos, que sua tiragem dominical gravitava em torno de 100 mil exemplares e que nos dias da semana variava entre 50 mil e 60 mil jornais. Esses quantitativos grandiosos respaldaram o jornal dos Maiorana a se filiar ao IVC, o primeiro na região a tomar essa iniciativa. Permanece como o único do Pará nessa condição até o início de 2006. Em 2005 a auditagem do IVC constatou que a informação jurada do editor de O Liberal era falsa e que a circulação paga do jornal estava aumentada em mais de 100%. Na véspera da chegada dos técnicos do instituto para a primeira auditagem trimestral de 2006, a direção da Delta Publicidade se desfiliou.
Por que esse rompimento súbito e unilateral, exatamente um dia antes da inspeção, evento inédito na história de meio século do IVC, que é uma das mais respeitadas instituições privadas do país e a fonte de maior credibilidade sobre o mercado de jornais impressos do Brasil? Provavelmente porque a auditagem constataria uma nova queda na circulação paga de O Liberal. Se em 2005 os números já estavam gravitando para abaixo de 20 mil exemplares, é bem provável que a tendência de queda persistisse.
Nesse caso, as posições na praça de Belém já estariam invertidas: O Liberal caminhando para ocupar a posição secundária, que fora do Diário, e o jornal do deputado federal Jader Barbalho no lugar da folha dos Maiorana. Nos quatro últimos anos o crescimento do Diário foi notável – e surpreendente. Mas tão impressionante foi também a queda dos padrões de circulação dos jornais paraenses, que passaram a competir num patamar bem mais baixo.
Números favoráveis
Talvez se precavendo para essa eventualidade, o Diário foi bem discreto ao anunciar que arrebatara do concorrente a primazia de ser o único jornal fiscalizado pelo IVC, que começou seu trabalho na empresa em fevereiro de 2007. Como ‘comprovação de sua ampla circulação’, o Diário passou a circular com o selo do IVC. Mas essa ‘ampla circulação’ só estaria atestada quando o instituto divulgasse o seu primeiro relatório. O relatório foi produzido, mas não divulgado. Se as informações vazadas pela fonte forem confirmadas, os números sugerem que o Diário ainda espera produzir quantidades melhores para fazer o primeiro anúncio sobre a apuração do IVC.
Esse incremento é possível? A queda nas tiragens de jornais é um fenômeno mundial, principalmente por causa das novas mídias, com destaque para a internet, que deslocaram parte considerável do mercado. Os índices do Pará, entretanto, são piores do que a média internacional. Em parte pode-se correlacioná-los ao baixíssimo nível de instrução da população estadual. O TRE mostrou recentemente que mais de dois terços dos eleitores do Pará são analfabetos ou sem-alfabetizados. Mesmo quando sabem ler, muitos desses cidadãos mostram-se incapazes de entender o que lêem. É um dado assustador, que pode ter-se agravado mais recentemente com as intensas migrações de mão-de-obra desqualificada, mas é histórico. Influi negativamente sobre os hábitos de leitura, mas há outros fatores (como o empobrecimento relativo do Estado e a concentração da renda) que também incidem sobre a redução do interesse pelos jornais (e as publicações impressas em geral).
A recuperação de leitores e a conquista de um novo público não serão movimentos espontâneos, resultantes de alguma mediúnica auto-regulação do mercado. A imprensa paraense precisará de coragem, honestidade, compromisso e competência se quiser estancar e fazer reverter essa sangria de jornais. Parece que a fase de truques e manipulações chegou ao fim, embora seus dirigentes não estejam ouvindo o dobre de finados. O Diário reincide no desrespeito, com que O Liberal sempre tratou a opinião pública, quando alardeia sua vinculação ao IVC, que mede a circulação efetivamente paga de jornais, mas só divulga resultados de pesquisa do Ibope, que mensura o índice de leitura, incluindo no cômputo exemplares gratuitos, cortesias, bonificações, vendas abaixo do custo e outros itens que distorcem o significado da estatística. Engana muitos, mas não todos. Os que não são enganados se indignam, reagem e acabam abandonando a publicação.
Já O Liberal tenta sua mágica colocando nas ruas muito mais jornal do que pode consegue vender. O preço dessa operação é muito alto e se manifesta através de enormes encalhes de papel, que retorna à empresa e é vendido por quase nada para a reciclagem. Talvez o jornal espere desse procedimento números favoráveis para oferecer à Ernest & Young, empresa de auditoria que contratou depois da fuga do IVC. Como até agora nada foi divulgado, talvez a operação ainda não tenha tido êxito.
Morte por anemia
Enquanto isso, as dificuldades aumentam. Já num grau tão elevado que provocaram uma iniciativa da empresa de causar perplexidade ao mercado. No dia 22 de janeiro começou uma campanha diária, com cinco anúncios de um quarto de página e um de página inteira procurando atrair assinantes. Quem assinar O Liberal receberá de graça o Amazônia, o outro diário da casa.
As coisas não estão ditas assim, é claro. A propaganda proclama: ‘Assine O Liberal por 1 ano e o Amazônia pelo mesmo período’. Mas o valor da assinatura equivale ao preço de capa de O Liberal (e, por causa da pressa com que a promoção parece ter sido concebida, quem paga de seis vezes, ao preço de R$ 442,86, ganha um centavo em relação a quem paga à vista, por R$ 442,87). Assim, o novo assinante de O Liberal receberá mesmo de graça o Amazônia. Será que, dentro de um ano, ele se disporá a fazer duas assinaturas, ao invés de uma?
Esta pode ter sido a intenção da campanha, mas se conseguir esse objetivo o marqueteiro de O Liberal poderá reivindicar um prêmio mundial pelo inusitado, surpreendente, milagroso. O que parece mais provável é que o Amazônia, sobrevivendo com precariedade há seis anos, acabe de vez. O jornal foi lançado em 2002, sob o patrocínio de Romulo Maiorana Júnior, para tirar leitores de A Província do Pará (que ainda circulava) e do Diário do Pará, competindo principalmente pelo preço (já que o de O Liberal disparara, na presunção de ser ‘o indispensável’, como era anunciado pela propaganda da casa). Mas acabou por engolir parte do público do irmão mais velho. O motivo era simples: por que pagar o dobro (ou 150% mais) para ter basicamente as mesmas coisas publicadas no jornal mais caro?
A nova campanha de assinaturas tenta convencer o público de que os dois jornais dos Maiorana formam ‘a dupla dinâmica da informação’, numa alusão a Batman e Robin e a outras duplas forçadas a servir de inspiração ao discurso inconvincente (Oscarito e Grande Otelo, Asterix e Obelix, Pelé e Coutinho, e por aí em frente). Pelo mesmo preço, o assinante certamente não se incomodará em receber um jornal a mais. Mas pagar pelos dois parece quase impossível.
As assinaturas dos dois principais diários variam entre 2 mil e 2,5 mil, um número desconfortável diante da revista Veja, que tem mais de 12 mil assinantes no Pará (e na edição do Círio do ano passado colocou em circulação no Estado 18 mil exemplares). Uma conduta comercial elementar recomendaria ao vendedor abater o valor da assinatura ou compensá-lo com qualidade inquestionavelmente superior do produto. Não é o que faz a campanha de O Liberal e do Amazônia. O mais previsível é que o Amazônia acabe por ser absorvido por O Liberal, transformando-se num encarte do jornal principal dos Maiorana ou simplesmente desaparecendo, como ocorreu, na década de 1990, com a outrora gloriosa Folha do Norte. O jornal dos Maranhão morreu anêmico por falta de apoio dos seus novos donos e saiu de circulação sem um aviso sequer ao leitor.
Espetáculo de insensibilidade
O problema é que os donos da informação no Pará se julgam com plenos direitos em relação à sociedade, fazendo e desfazendo conforme seus caprichos e interesses. Enfrentam os desafios reais colocados diante da imprensa convencional pelas novas mídias à base de miçangas e espelhinhos, o método de atração das populações primitivas da Amazônia pelos agentes da aculturação. Julgam que com sangue, fofoca e mulher nua manterão os atuais leitores e seduzirão os novos.
Na véspera de sua maior promoção, o concurso Rainha das Rainhas, O Liberal deu ao espetáculo cinco páginas de noticiário, com chamada ocupando metade da primeira página, mais um anúncio institucional de página inteira, agora contando com o inédito e incrível patrocínio oficial, através da Secretaria de Cultura do Estado do governo petista (certamente em nome da popularização carnavalesca da cultura).
No dia do desfile (que manteve toda cidade acordada até as quatro da manhã, segundo a – sempre –imodesta observação da principal coluna do jornal, o Repórter 70), a TV Liberal colocou quase 100 dos seus profissionais na cobertura, Trata-se de esforço como jamais é feito em qualquer outro trabalho profissional da emissora, cada vez mais claudicante no acompanhamento de fatos menos esvoaçantes do que concurso de miss de carnaval (com direito a foto de todas as moças na primeira página, tendo ao centro o radiante presidente-executivo da empresa). No dia seguinte, mais três páginas, além de farta distribuição de fotos e notas em colunas. Uma vez cessada a saison e findo o encanto dos paetês, o mundo retoma ao seu caminho real.
Já a temporada de sangue é mais duradoura. Enquanto a imprensa marrom encolhe no mundo, no Pará se revitaliza, mas incorporando práticas que mesmo outros jornais ainda dedicados à cobertura extensiva do crime já aboliram. A publicação de ‘presuntos’, por exemplo. Provavelmente porque ficou para trás em quantidade de páginas, o Diário do Pará publicou nada menos do que seis fotos de cadáveres na sua edição do dia 22, incluindo a capa do tablóide policial. Se não for recorde macabro em todos os tempos, é feito sem paralelo nos últimos anos. O Liberal nesse dia abrigou ‘apenas’ dois cadáveres, mas suas fotografias saíram maiores, ambas caprichando no realismo do sangue, dos cortes e dos hematomas.
Já está na hora de o Ministério Público do Estado, como defensor dos direitos difusos da sociedade, chamar os jornais para um Termo de Ajuste de Conduta. Por que essas fotos escandalosas são apenas de pessoas pobres? Os pobres não têm direito à preservação de suas imagens, ou essa prerrogativa é exclusiva de grã-finos e socialites, que nunca viram ‘presuntos’? Os pobres parentes têm que ser obrigados a enterrar, junto com o corpo da vítima, a sua dignidade também? É essa a imagem documental que lhes fica como herança?
À falta de princípios éticos das empresas, o MP tem que combater essa prática daninha, ou, como diria a vovó Zulmira, personagem de Stanislaw Ponte Preta, secundada pela ministra Marta Suplicy: se a moral não pode mais ser restaurada, então que se relaxe e aproveite, colocando os cadáveres de colarinhos brancos nas páginas da seção policial. Antes que elas se tornem mostruário do IML, cabe perguntar aos editores dos jornais se eles conseguem encarar os seus filhos depois de promoverem esse espetáculo de insensibilidade e se dormem com suas consciências tranqüilas. A ordem para a exploração da morte, que vira espetáculo, é do patrão, mas o exato cumprimento é do jornalista. Ele também tem culpa.
Fórmula da perenidade
O caminho seguido pela imprensa paraense aponta na direção de dificuldades crescentes para as empresas que apostam principalmente na fantasia, na ilusão de um poder que se corrói. O Liberal podia apresentar um troféu de janeiro: a volta dos anúncios de Y. Yamada às suas páginas. Teria, finalmente, sido sacramentada a reconciliação entre as partes? Aparentemente, sim. Na verdade, em termos.
O que houve foi um surto de publicidade com motivação específica e amplitude circunscrita. O grupo Yamada precisou reagir à propaganda que o grupo Líder veiculou, apresentando-se como o maior e melhor supermercado do Pará. Os Yamada retrucaram, mostrando que têm ‘a maior e melhor rede do Norte, 11º do Brasil pelo segundo ano consecutivo’. Mas se programaram páginas inteiras em O Liberal, não incluíram encartes veiculados exclusivamente no Diário do Pará (três na edição dominical do dia 27).
A atitude indica que os Yamada, os maiores anunciantes privados do Estado, podem voltar a anunciar, de forma eventual ou sistemática, nos veículos do grupo Liberal, mas não conforme as regras que os Maiorana quiseram impor, com base numa grandeza do passado que não existe mais. Se os Yamada vão manter essa decisão ou voltar atrás, ainda é questão em aberto, sujeita às flutuações das circunstâncias. Bastou que voltassem a anunciar em O Liberal para reaparecerem nas páginas editoriais do jornal, com destaque até maior do que a da cobertura do Diário do Pará, certamente surpreendido pela súbita (mas já comum) guinada do concorrente, que antes vetava e agora promove.
Esse ziguezague editorial segue as conveniências pessoais e comerciais dos donos da imprensa, que agem e reagem pensando apenas no imediato, mas compromete as estratégias de longo prazo, perenes, sólidas. E é delas que depende o futuro dos jornais do Pará, ameaçado por uma série de fatores adversos. Não lhes é suficiente fazer propaganda (enganosa), oferecer vantagens (ilusórias), anunciar grandezas (insubsistentes): é preciso que se tornem realmente essenciais para seus leitores, ajudando-os a enfrentar os enormes desafios do próprio Pará, que cresce se subdesenvolvendo. Essa é a fórmula da perenidade. O resto é como um assustado de carnaval: impressiona, mas não é duradouro. Faz barulho, mas passa.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém, PA