Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cliança tloca o ele (r) pelo ele (l)?

A ComCiência acaba de publicar uma edição dedicada ao tema ‘Ortografia’. Sem nunca ter negado a importância da escrita, sempre me preocupei com uma certa confusão entre escrita e fala no imaginário das pessoas em geral. E, recentemente, essa preocupação reavivou inquietações que, acreditem, já tinha desde minha infância. Minhas filhas, de seis e três anos, têm adorado assistir a um desenho da TV Cultura de São Paulo chamado Super Fofos. O programa é musicalmente excelente, com trilha orquestrada que já recebeu prêmios importantes. Um personagem em particular, o patinho Ming-Ming, tem uma característica de fala que comparo com a de outros dois personagens de minha infância.

Em um trecho da música principal do desenho, ele canta ‘Não somos glandões’ e, se o verso seguinte fosse seu, cantaria ‘nem foltes também’. Dá para imaginar o que acontece em outros contextos onde apareceria um ‘erre’ nos diálogos com a participação de Ming-Ming. Essa característica é a marca registrada de um dos principais personagens de Maurício de Souza, o Cebolinha. Como esse personagem da Turma da Mônica nasceu primeiro nos gibis para depois ganhar as telas, aqueles que o conhecem certamente viram primeiro a sua fala com a característica troca de ‘erre’ por ‘ele’ na escrita dentro dos balões que representam os diálogos nas histórias em quadrinhos; e só depois ouviram o efeito daquela ‘troca’ na dublagem do desenho no cinema e na TV.

Troca é de sons

Aprendi a ler muito cedo e li bastante as histórias da Turma da Mônica. E sempre achei aquela fala do Cebolinha inverossímil – embora, obviamente, não soubesse o que essa palavra significava. Eu certamente sabia que uma criança que estava aprendendo a falar trocava alguns sons por outros, mas o Cebolinha já tinha passado dessa idade (devia ter por volta de sete anos) e eu nunca havia ouvido alguém falar como ele. Talvez ele se encaixe em um dos casos descritos pela Associação Brasileira de Dislexia: o disléxico sempre tem dificuldades com a ortografia, muitas vezes tem dificuldade para compreender textos escritos e às vezes tem dificuldade com a linguagem falada. Mesmo que o caso do Cebolinha seja de dislexia, acredito que a tal ‘troca’, na vida real, não se dê em todos os contextos de fala onde apareceria um ‘erre’.

E aqui entro na questão que abre este texto – a da confusão entre escrita e fala – e que um outro personagem infantil deixa ainda mais explícita. Trata-se de Hortelino Troca Letra, um coadjuvante dos desenhos do Pernalonga e do Patolino. Vejam só o nome desse personagem. Ainda que um ou outro episódio pudesse envolver em certos momentos a escrita, o que Hortelino ‘trocava’ era rigorosamente o mesmo que Cebolinha e Ming-Ming: em sua fala, todos os ‘erres’ eram pronunciados como ‘eles’. Portanto, não é letra que ele troca, mas sons de ‘erre’.

‘Desvio’ é considerado erro

Não vou nem entrar nas diferentes pronúncias de ‘erre’ decorrentes de diferenças dialetais, como, por exemplo, o ‘erre’ caipira (que é chique em Nova York). Basta falar nos ‘erres’ de minha filha Anita, de três anos. Ela troca o som de ‘erre’ por ‘ele’ em contextos específicos: ‘O balão estoulou’, ‘Não entendi dileito’, ‘A Malina chegou’. Se pensarmos que o som do ‘erre’ nesses contextos é diferente do som do ‘erre’ em ‘rato’ e ‘carro’, talvez não seja surpreendente que, nesses casos, minha filha pronuncie ‘erre’. Nos contextos em que há outra consoante antes do erre, como na música cantada por Ming-Ming, o ‘erre’ é simplesmente apagado ‘A piscina é bem gande’ ou ‘O papai é gandão’ ou ainda ‘Meu pato ainda tá cheio de comida’. Quando o som de ‘erre’ como o de ‘carro’ e ‘rato’ tem outra consoante depois, ele é transformado em uma espécie de semi-vogal: ‘Poi que?’ ou ‘Eu tô usando o maitelo’.

O que quero dizer com tudo isso? Apenas que acho difícil alguma criança dizer que está ‘louca’ para falar da rouquidão de sua voz – como o Cebolinha faria –, assim como acho difícil, na vida real, alguma criança dizer que está brincando com o ‘maltelo’. E o que Cebolinha e Hortelino ilustram é a visão (generalizada, por sinal) da escrita como representante única e correta da língua, diante da qual todo e qualquer ‘desvio’ é considerado como erro. Mas o que seria, na verdade, a real característica desses personagens é uma fala diferenciada, e fala é som, não é letra.

Além de ilustrar o equívoco, Cebolinha, Hortelino e Ming-Ming, na minha visão, ajudam a disseminá-lo.

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Lingüista e editor da revista ComCiência