Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Cobertos de razão a 37 mil pés

‘Este fato, em especial, tem servido como argumento daqueles que saem em defesa dos pilotos norte-americanos, uma vez que entendem que o plano de vôo em vigor correspondia à autorização verbal fornecida a eles na partida de São José dos Campos, no que, considerando as normas de procedimentos, estão cobertos de razão.’ Relatório preliminar da CPI da Apagão Aérea da Câmara

O CPI disse que aqueles que saem em defesa dos pilotos estão cobertos não com a bandeira, mas com razão. Vamos examinar estas razões, os fatos, as regras do ar.

Pilotos voam, não pelo plano de vôo que eles solicitem, mas pela autorização ou clearance dado pelo controle de tráfego aéreo. Como a CPI explica, ‘fica evidente que a autorização de vôo não, necessariamente, corresponderá ao plano de vôo apresentado originalmente’. O relator dá o exemplo do vôo 1907:

‘Da aeronave Boeing 737-800, da Gol, pode ser citado, para efeito de contextualização, que seu plano de vôo original previa o nível FL 410 (41 mil pés de altitude)…’

Pelos planos de vôo originais, nenhum dos dois aviões estaria a 37 mil pés. Pelos clearances, que é o que vale, ambos estavam. O relatório revela o clearance dado para o Legacy:

17:41:57 GNDC-SJ: November seis zero zero x-ray lima, autorização ATC para Eduardo Gomes, nível de vôo três sete zero, direto Poços de Caldas, acione o código transponder quatro cinco sete quatro. Após a decolagem, execute subida Oren.

17:42:26 N600XL: Ok, senhor, eu peguei a pista um cinco para So… ah SBEG, nível de vôo três sete zero, eu não peguei o primeiro fixo, eu peguei acionar quatro cinco sete quatro, partida Oren.

17:42:40 GNDC-SJ: Afirmativo.

O relator erra ao dizer que ‘o piloto do Legacy, conforme mandam as regras da ICA 100-12, ‘cotejou’ (repetiu), às 17h42min26s, a autorização recebida imediatamente antes, às 17h41min57s, do GNDC-SJ’, mas no cotejamento não indicou até onde seria o nível FL370, deixando implícito que seria até o Aeroporto Eduardo Gomes, em Manaus, pois o código do Aeroporto Eduardo Gomes é ‘SBEG’, tal como disse o piloto da Legacy. Foi explícito, não implícito.

Clearance parcial

A mesma regra que manda o pilota cotejar as instruções termina da seguinte forma:

‘NOTA: Se um piloto repetir uma autorização ou instrução de maneira incorreta, o controlador transmitirá a palavra ‘negativo’ seguida da versão correta.’

O piloto repetiu a instrução de seguir as 37 mil pés até SBEG e a resposta que ouviu foi ‘afirmativo’.

O coronel-aviador Rufino da Cenipa, presidente da comissão investigando o acidente, foi questionado na CPI sobre como teria, enquanto piloto, interpretado o clearance dada ao Legacy. Ele disse que teria entendido que fosse autorizado a voar a 37 mil pés até Manaus.

Um clearance é mais que uma autorização; é uma ordem. No espaço aéreo controlado, o piloto é obrigado a seguir seu clearance e estar onde o ATC mandou ele estar, e não em qualquer outro lugar. É responsabilidade primordial da ATC manter a separação entre aeronaves, de não enviar duas para o mesmo lugar e ao mesmo tempo. Ocorreu uma falha.

Como acontece a falha? Uma alegação bastante comum, em certa época, era a de que os pilotos não eram familiarizados com as regras do ar brasileiras. Os controladores daqui costumam dar somente um clearance parcial, do primeiro trecho. Por que os pilotos não souberem disso? O relatório, de novo nos socorre:

‘Por tudo o que foi exposto, conclui-se que a emissão de mensagem com autorização parcial para o vôo de uma aeronave é um procedimento sem qualquer fundamento normativo.’

Não é que os pilotos norte-americanos não entendam as regras do tráfego aéreo brasileiras, mas que os controladores brasileiros costumam – ou, espera-se, costumavam – não as seguir.

Procedimentos cumpridos

No trecho da aerovia entre Brasília e Manaus, uma altitude de número ímpar é contramão. O pilotos sabiam; são cuidadosos e, como consta no relatório, tinham a bordo uma carta aeronáutica em que tinham traçado a rota. Como fica?

O relatório traz a regra aplicável a este caso:

‘8.3.6 DESIGNAÇÃO DE NÍVEIS DE CRUZEIRO

8.3.6.1 A menos que autorizado em contrário pelo respectivo ACC, os níveis de cruzeiro utilizáveis para voar em aerovias ou fora delas são os constantes na tabela de níveis de cruzeiro…’

‘A menos que autorizado em contrário.’ Quando, num cruzamento, um guarda está controlando o tráfego e mande você prosseguir ainda que o farol esteja fechado, você prossegue. Nos céus, também. O clearance foi uma autorização em contrário. Paladino informou em entrevista que isso é rotineiro nos EUA e outros pilotos o confirmam.

A imprensa brasileira também tem confirmado isso no seu jeito normal: uma acusação confirmada dá manchete; uma defesa confirmada dá silêncio.

Resumindo, o piloto cumpre o clearance, os ordens da torre de controle, e não o plano de vôo, tanto que o Boeing que fazia o vôo 1907 da Gol também não estava na altura prevista no plano de vôo. As alturas normais de tráfego das aerovias também são subordinadas aos clearances. Há regras exatas sobre como os clearances são dados, repetidos, e confirmados. Estes procedimentos foram cumpridos e o Legacy não somente estava em pleno direito, mas em estrito cumprimento das ordens da ATC, de 37 mil pés.

Transponder fora do ar

Há, ainda, o mistério do transponder. Como parou de funcionar? O presidente da Embraer informou a CPI que não há registro de falhas de transponder. Afirmação estranha, pois indo para o banco de dados da FAA encontram-se pelo menos meia dúzia de registros de casos, de vários anos para cá, em que o transponder de um avião da Embraer da série Legacy parou de funcionar.

Pior ainda: em vários desses casos, o registro incluía o comentário de que, depois que o avião pousara, testes no transponder mostraram que estava tudo OK. Desta pesquisa, saímos sabendo menos do que quando entramos, pois agora nem poderíamos confiar nos testes da Honeywell, dizendo que o transponder estava 100%.

E é sabido que várias peças destes aviões N600XL foram instaladas anteriormente em outros aviões na fábrica da Embraer, apresentaram defeitos, foram enviadas de volta para o fabricante – algumas mais de uma vez – e foram instaladas pela Embraer nos N600XL, sem informar o cliente, ExcelAire.

Curioso que há um grande afã em encontrar um defeito técnico no Airbus da TAM, ainda que não existam evidências apontando para isso. Porém, quando há provas de que não somente esse problema se deu com a Legacy e essas mesmas peças já mostraram defeitos, a possibilidade de falha técnica é descartada de imediato.

No mistério do transponder, a palavra está com Embraer e a Honeywell.

Tradução fajuta

Um dos hábitos da imprensa brasileira, ao lidar com uma acusação criminosa, é de que a versão oficial é plenamente confiável, enquanto a defesa ‘alega’ sua ‘versão’. Conforme aparece na página 65 do relatório da CPI, a tradução nos informa que, oficialmente, 133 é 132.2; que 18:41:40.0 é 18:41:10.0; que 13510 é 1510, 12925 é 2925. Eu alego que não.

E isso é somente em relação à página 65. Em outras partes do relatório, aprendemos que oficialmente on board é ‘no teclado’; que pulling é ‘empurrado’ e que 17 mil libras de combustível pesam 1.700 libras.

Reclamações pequenas, mas eu aprecio detalhes. Há problemas maiores. Também alego que ‘Se nós batemos em outra coisa’ não é exatamente ‘E daí se nós batemos em alguém’. Que And I started queering‘em não se pode traduzir como ‘E eu comecei a arriscar’.

A tradução da Polícia Federal, pelo menos na forma que foi colocada no relatório da CPI e na imprensa, não chega a um bom nível colegial.

Digo mais: a tradução mostra descaso, imperícia e negligência – e tem erros para os quais a explicação mais plausível é a má-fé. Suas falhas deturparam tudo o que nela foi baseado.

Vale a pena conferir o livro Caixa-Preta, do jornalista Ivan Sant’Anna. Ele explica que o relatório final do acidente da Varig perto de Paris, em 11 de julho de 1973, foi produzido em francês. Nas páginas 102-103 ele mostra que a tradução juramentada para o português ‘foi uma fraude’, assim economizando indenizações à Varig.

Culpados e norte-americanos

O acidentes com os vôos 1907 da Gol e 3054 da TAM 3054 criaram muitas viúvas e muitos órfãos. A viuvez traz muitas perdas: o sustento financeiro, o amor do ente querido. Porém, não traz ganhos em sabedoria aeronáutica, nem o ganho do amor à verdade, como tem sido amplamente demonstrado pela associação formado por 14 famílias de parentes.

A imprensa tratou essa associação como a voz das famílias, nunca questionando sua legitimidade ou os ‘fatos’ que eram apresentados. Finalmente, em 13 de junho, a associação foi à CPI da Câmara e lá encontrou um abaixo-assinado de cerca de 100 parentes dizendo que aquela associação não os representava. Nas notas taquigráficas da comissão, lemos:

‘O SR. DEPUTADO EDUARDO CUNHA: – […] aquela associação que a gente acreditava representá-los, mas a gente viu que na prática era, digamos, uma coisa não muito séria, então não…

O SR. PRESIDENTE (Deputado Marcelo Castro) – Não era representativa do universo.’

Aqui não há espaço para entrar nas muitas mentiras veiculadas pelos dirigentes dessa associação, confiantes que suas fantasias passariam batidas pelo crivo do jornalismo brasileiro. Afinal, fazem acusações, mas o senso crítico dos repórteres só funciona contra declarações dos acusados.

Quarta-feira à noite, ouvi o advogado de uma rede de televisão falando do mau uso da Lei de Imprensa para tentar calar jornalistas. O exemplo que ele usou foi o de um cartola que é litigante conta Juca Kfouri. Curioso é que o advogado do cartola, em pelo menos um destes casos, é tratado pela imprensa como um paladino, suas declarações são solicitadas e veiculadas sem verificação. Pelo menos quando ele ataca os pilotos, representando várias famílias em ações impetradas na justiça dos EUA, cujo sucesso se baseia em responsabilizar não quem é culpado, mas quem é norte-americano.

Acusação e informação

Ao contrário da associação, não fingi representar alguém além de mim mesmo. Desde novembro do ano passado, traduzo o noticiário brasileiro para Joe Sharkey, mas enquanto ‘ouço’ para ele, falo somente para mim. Ainda mais porque não falo com a autoridade ou permissão dos pilotos, de sua empresa, ou de seus advogados, de quem não recebo apoio financeiro nem informações.

O tempo e o espaço não permitem responder a todas as acusações infundadas feitas contra os pilotos, nem explicar o que motiva as investigações de acidentes aéreos, nem apontar os erros consagrados da imprensa brasileira, ilustrados mais uma vez nesta perseguição.

Mas digo que acusação não é a mesma coisa que informação. Que usar uma medida para quem acusa e outra para quem é acusado não é equilíbrio; que desconfiar e desprezar tudo o que é dito pela defesa – enquanto da acusação qualquer declaração é solicitada e veiculada sem a mínima de verificação – não leva à verdade, nem à justiça.

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Formado em Filosofia pela Universidade de Yale e consultor empresarial