A que remete a imagem do homem de barba e óculos que exige a lista de passageiros do vôo 3054? Sadismo. Só posso pensar nisso. Não é um homem desesperado que vejo; é um jornalismo que perdeu os limites morais, éticos, humanos.
O que dizer então dos âncoras austeros, equilibrados e sisudos que pontuam informações com novas imagens do aeroporto Salgado Filho, de onde partiu o vôo, e de Congonhas, aonde ele nunca, de fato, chegou? Cínicos, de um cinismo delirante que nem eles próprios parecem se dar conta.
Não há quem me convença, não há escola, teoria ou profissional experiente que me faça aceitar a necessidade, a utilidade, o enquadramento em alguma lei jornalística destas imagens de pessoas plenas de angústia e desespero. O que se quer, pergunto, com que intento se exibem tais imagens? Vez após outra, da manhã à noite, em todos os horários, o que se pretende com esta exposição imoral, invasiva, criminosa das famílias?
Como me disse uma amiga, eu não preciso destas imagens para compartilhar a dor destas pessoas. Cessem os detalhes. Uma tragédia, evento intrínseca e eminentemente humano, atinge a todos que sabem dela. Em maior ou menor intensidade, somos todos alcançados por um pesar. A simples notícia de um avião que despenca e explode com duzentas pessoas a bordo é suficiente para pensarmos nos nossos, nos que ainda estão conosco e nos que já foram.
Sórdida narrativa da dor
Mas a cobertura televisiva parece seguir outros preceitos. Ligo a TV para me espantar: com que sangue gélido pode um repórter perguntar a alguém quem, ou quantos, ele perdeu no desastre? Ali, minutos, talvez segundos depois da confirmação de mais uma morte? O que dizer, então, do homem que pede desculpas à repórter antes de dizer que perdeu a esposa? Estamos satisfeitos ou ainda é preciso mais, uma melhor explicação da expressão ‘ficar sem chão’?
Tentei buscar, na completa incivilidade ou na total demência, um adjetivo que me valesse nesta hora. Aproximam-se, mas não são suficientes para expressar o que sinto ao pensar que isto se passa por jornalismo. Nem o caos, nem o absurdo completo me servem para um diagnóstico.
Ontem mesmo, na Folha Online, Eliane Cantanhêde tratou da tragédia como algo que já se podia esperar. Hoje, Luis Weis, no Observatório da Imprensa, ao destacar a análise que espera dos grandes jornais, volta ao mesmo tema: de quem é a culpa?
Eu também não sei. São perguntas importantes e é ótimo vê-las sendo feitas com rapidez e consciência, mas ainda mais necessário é refletir se, para realizar a pauta ou para vencer na audiência, é aceitável cruzar o limite do respeito ao privado e ao íntimo.
A cobertura das redes de TV abertas passou longe de ser ampla, irrestrita, detalhada. Converteu-se numa sórdida narrativa da dor, um dramalhão irresponsável que seria risível, se não fosse real.
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Jornalista, Salvador, BA