Tendo passado a acompanhar a Folha de S. Paulo diariamente desde, mais ou menos, o início de 2007, propus-me a um exercício de interpretação e resistência: ler 50 colunas de Clovis Rossi e fazer um apanhado geral do que o colunista vem dizendo ao país – pessoalmente, creio que o resultado foi impressionante. As colunas com as quais trabalhei abrangem o período de 9/6/2007 a 9/8/2007.
Nestes dois meses, a abrangência de temas tratados por Rossi é enciclopédica: o colunista não tem problema em lidar com assuntos díspares e não se sujeita à superfície – sabe sobre sistema aéreo, sabe como funciona um avião e também o que se diz nas filas de embarque quanto à economia, uma especialidade do colunista; nestas 50 colunas, ele fala da economia internacional, avaliando ganhos e perdas do Brasil nos mercados mundiais, analisa a política econômica do governo, apresenta-nos algumas economias européias, fala do encontro do G-8 e, volta e meia, considera algo em relação à inflação e taxas do Copom. Como ninguém é de ferro, Rossi explora seus conhecimentos tanto em relação aos esportes ‘olímpicos’ quanto ao nosso futebolzinho tupiniquim, repetindo o presidente em suas metáforas boleiras. O homem, definitivamente, não é fraco: quem o leu nestes 50 dias pôde ainda conhecer algumas de suas conclusões sobre o funcionamento da política federal, do poder judiciário, das forças armadas brasileiras e dos projetos relativos ao sistema eleitoral brasileiro. Lembrei daquela frase de Otto Lara Resende: ‘Tenho para mim que sei, como todos os brasileiros, os três primeiros minutos de qualquer assunto.’
Ditadura, fascismo…
Embora não se possa dizer que o colunista não varia de assunto, destaca-se sua obsessão pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. É citada 65 vezes a palavra Lula e antes do leitor perguntar como (se ele também falara de tantos temas diversos) informo que Rossi não tem nenhum problema em misturar qualquer que seja o tema com o presidente Lula. Também há uma certa predileção pelo ‘relaxa e goza’ pronunciado pela ministra do Turismo, Marta Suplicy. São 14 as referências à fala da ex-prefeita paulistana nestas 50 colunas.
Sobre os petistas (ou os ‘adeptos do lulo-petismo’), os mais violentos adjetivos: em primeiro lugar, são debilóides (27/7). Quem apóia o presidente e não se insere no lulo-petismo só pode ser, na visão do colunista, um dos miseráveis ‘contentinhos’ (4/7) com as migalhas oferecidas pelo governo federal. Vivemos, afinal, uma época de ‘ufanismo idiota’ (24/7), que Rossi, acredite, compara ao período militar em que se propagavam slogans como ‘Ninguém segura este país’. Alguém reclamou das vaias ao presidente? O colunista já previa: ‘Não surpreende que os hidrófobos do lulo-petismo tenham babado e mordido. É só o que sabem fazer’ (18/7). Nada disso passa do nível de ‘idiotices conspiratórias’ (15/7). Hoje em dia, afinal, vivemos a ‘auto-louvação e o culto à personalidade'(15/7) do presidente. Pois é: ditadura militar, associação com o fascismo e vem mais…
‘Única conclusão possível’
O catastrofismo em textos de Clovis Rossi é barroco – perpassa todas as semanas de seu trabalho em cores dramáticas: em um dia, Rossi lembra que estamos ‘na marcha batida (…) para a barbárie’ (28/6), o que é um lucro, já que no dia anterior nos encontrávamos em pleno ‘estado de barbárie’ (27/6). Para quem espera a solução pela política, condolências: ‘A política brasileira tornou-se completamente não-funcional, inútil mesmo’ (21/6). A queda da desigualdade econômica, que tem sido manchete desde os anos FHC, é uma farsa, ‘uma lenda brasileira’ (17/7). A saída, para Rossi, deve ser mesmo difícil de se vislumbrar, já que no país ‘ninguém reclama’ (21/7). Para afirmar isso, só se o jornalista não passasse da própria coluna na leitura do jornal em que trabalha, para não ter de ir mais longe. Aliás, não poderia ler sequer a sua coluna.
Ao longo dos dias, vou percebendo que o que não falta em Rossi é aquela suave irresponsabilidade de quem tem coluna cativa num dos principais jornais do país e precisa mostrar (bradar!) serviço. Vejamos suas ‘corajosas’ afirmações, definitivas, entrecortadas por recados ao pé do ouvido para Lula: ‘A política brasileira tornou-se completamente não-funcional’ (21/6); ‘o lulo-petismo acabou marcando encontro com o malufismo’ (24/6); ‘Engano seu, presidente’ (10/6). Reclama dos problemas óbvios que o presidente não vê, mas lembra, em título, que ‘Lula não é inimputável’ (2/8), numa aparente disputa pela divulgação do óbvio ignorado. Coroando este tópico – e se poderia alongá-lo até cansar o leitor –, sua afirmação sobre o acidente com o avião da TAM, em São Paulo: ‘Qual é a única conclusão possível do conjunto da obra?’ (24/7). Ou seja, sete dias depois do acidente, que demandará uma investigação de quase um ano, Rossi já detinha a ‘única conclusão possível’. Com tal grau de acurácia, deveria tratar da previsão do tempo também…
O perfil dos (e)leitores
O resumo da ópera, 50 colunas de Clovis Rossi depois: o ambiente no governo é ‘cavernoso, turvo’ (10/6); as costuras políticas são ‘alianças nefastas’ (28/7) do presidente; os mesmos setores que bancaram a governabilidade de FHC são sentidos por seu ‘tumor fétido’ (28/7). Estamos na barbárie – na melhor das hipóteses, caminhamos para ela. Vivemos uma época de ufanismo idiota, exatamente como nos momentos mais sombrios do regime militar. Nosso governo não aceita críticas e o presidente está cercado por debilóides autolouvatórios que fazem tudo o que sempre criticaram em outros governos – embora nos outros governos não se ouvisse nada sobre flagelados econômicos que apóiam o presidente em troca de bolsas de dezenas de reais. Isso tudo em meio a uma gama fenomenal de assuntos – todos tratados com a menor cerimônia possível.
Em outro de seus textos notáveis, enfim, Rossi mostra preocupação com a intolerância à crítica no Brasil. Modestamente, creio que depende de quem faz a crítica, sobre o que critica, como critica. Mas, contrariando sua própria idéia de que toda generalização é um equívoco, Rossi não vê diferença alguma em qualquer forma de apoio ao governo. Pela postura onisciente, o enciclopedismo irresponsável e o baixo nível dos ataques do colunista, fiquei imaginando que ele estaria se comunicando com os setores menos escolarizados da população, que, a princípio, compõem a base do apoio ao presidente Lula. Se pensarmos assim, entenderemos a escolha deste jornalista para espaço tão nobre num dos principais diários do país. Mas será esse o perfil dos (e)leitores da Folha?
******
Servidor público federal, Porto Alegre, RS