O repasse de R$ 100 bilhões do Tesouro Nacional ao BNDES rendeu matérias e manchetes de primeira página em seis dos maiores jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. A mais generosa foi a do Jornal do Brasil: ‘R$ 100 bi para criar empregos’. A mais dura foi a do Globo: ‘Tesouro dá R$ 100 bi para BNDES socorrer empresas’. Os demais publicaram títulos neutros e acrescentaram o tempero, nem sempre com muito empenho, nas páginas internas. Na área fiscal, esse aporte foi a ação mais vistosa do governo, até agora, nas manobras para conter o agravamento da crise. Foi bem recebida por líderes da indústria, mas seus efeitos são incertos e há dúvidas sobre os critérios de uso do dinheiro.
A notícia da ajuda oficial ao grupo Votorantim para comprar o controle da Aracruz Celulose ainda era assunto quente quando o ministro da Fazenda Guido Mantega anunciou a nova injeção de recursos no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social. A comparação entre as matérias publicadas na sexta-feira (23/1) mostra como é possível produzir uma cobertura ao mesmo tempo crítica e rica de informações.
Condições frouxas
A matéria do Globo realçou a prioridade à Petrobras nos planos do BNDES: a estatal, segundo a matéria, deverá receber um financiamento na faixa de R$ 15 bilhões a R$ 20 bilhões (na sexta-feira, o presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli confirmaria um compromisso de financiamento já assumido de R$ 11,9 bilhões). A maior parte da capa do caderno de Economia foi preenchida com uma grande arte, com indicação da fonte dos R$ 100 bilhões (títulos emitidos pelo Tesouro e superávit financeiro), custos para o banco e evolução dos financiamentos entre 2003 e 2008.
Na segunda página, uma advertência na coluna de Miriam Leitão: ‘Se escaparmos da crise global, teremos uma crise feita pelo governo Lula. O governo está aumentando o risco fiscal com medidas como a anunciada ontem’. O BNDES tem tomado ‘decisões sem transparência e discutíveis sob vários aspectos’, segundo a colunista. Uma dessas decisões foi o apoio financeiro à compra do controle da Aracruz pela Votorantim – duas empresas com ‘enormes prejuízos’ causados por operações com derivativos cambiais. Economistas citados na coluna comentam a medida anunciada pelo governo e possíveis alternativas, como a redução da carga tributária.
Na Folha de S.Paulo, a matéria principal destacou a prioridade à Petrobras, a criação de empregos como condição dos empréstimos e o impacto da nova medida na dívida pública. O repasse ao BNDES vai ser contabilizado como empréstimo e, portanto, seu impacto na dívida líquida será nulo, segundo explicação do ministro da Fazenda. Mas o valor será contabilizado na dívida bruta e o uso do superávit financeiro reduzirá a capacidade do governo de liquidar seus compromissos, de acordo com a matéria.
Uma descrição razoável, em vista dos poucos detalhes disponíveis naquele momento. A maior parte dos jornais não deu mais que isso nas edições de sexta (23/1) e nem todos foram tão claros. Valeria a pena avançar no assunto, nos dias seguintes, por causa das condições frouxas do empréstimo, confirmadas pela Medida Provisória 453. Do ponto de vista das contas públicas, a história pode ser bem mais complicada.
Critérios na aplicação do dinheiro
A radiografia crítica, na Folha de S.Paulo, foi apresentada na coluna de Vinicius Torres Freire, onde a oferta dos R$ 100 bilhões foi descrita como ‘o maior cheque especial da história brasileira’, com ‘custos provavelmente subsidiados’. O artigo não é contrário, em princípio, à ação do governo por meio do BNDES: as empresas podem ser mais eficientes na execução de seus planos e mais seletivas em seus projetos. Mas chama atenção para a falta de informações sobre o custo para as empresas e para o risco de privilégios (sem menção a operações anteriores do BNDES).
No Valor, o material foi apresentado no formato mais comum – uma retranca detalhada sobre as informações oficiais e as explicações do ministro da Fazenda e outra com opiniões de economistas conhecidos. O texto expôs de forma equilibrada as opiniões favoráveis e as críticas. Os mais otimistas quando ao uso dos R$ 100 bilhões mostraram a importância do repasse numa fase de crédito apertado e a conveniência de se aplicar esse dinheiro em projetos de investimento. Os menos entusiasmados mostraram preocupação com o subsídio, com a provável piora da situação fiscal e com o condicionamento dos empréstimos à geração de empregos.
Não se apresentaram, nessa matéria, grandes dúvidas quanto aos critérios do governo ou do BNDES na aplicação do dinheiro. Mas um dos entrevistados, o consultor e ex-presidente do Banco Central Gustavo Loyola, apontou um risco: grandes empresas poderão ficar com boa parte dos empréstimos, embora tenham melhores condições que as outras para captar dinheiro no mercado. Pelo menos um caso já era previsto, o da Petrobras, mas o detalhe não foi mencionado.
Uma boa discussão
O Estado de S.Paulo se concentrou na reprodução das informações apresentadas pelo ministro da Fazenda e entrevistou dirigentes de várias entidades da indústria, todos favoráveis à iniciativa do governo. Foi destacada, num texto com perguntas e respostas, a opinião do presidente da Associação Brasileira da Infra-estrutura e Indústrias de Base (Abdib), Paulo Godoy. ‘Foi como música para os ouvidos’, disse o empresário sobre o anúncio dos R$ 100 bilhões.
Numa retranca à parte, o único economista entrevistado, Luiz Gonzaga Belluzzo, apoiou a medida e sugeriu a estatização temporária do crédito. ‘O Estado’, disse, ‘não pode deixar a economia parar se os bancos comerciais decidiram não conceder empréstimos.’ A única dúvida apareceu numa pequena matéria de uma coluna. Partidos de oposição já planejavam questionar o ministro da Fazenda sobre a compra de 49,9% do Banco Votorantim e poderão pedir explicações sobre as medidas anticrise.
O exame dessa cobertura, com a análise dos enfoques e da amplitude dos vários conjuntos de matérias, poderia render uma boa discussão numa escola de Jornalismo. Seria interessante comparar, por exemplo, a procura de opiniões de especialistas, num caso como esse, e a rotineira, ritualística e chatíssima repercussão das decisões do Comitê de Política Monetária (Copom).
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Jornalista