Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como criar inimigos e influenciar pessoas

A edição de 20 de maio do jornal O Globo oferece lições contundentes
sobre manipulação da informação, construção de estereótipos e reafirmação de
preconceitos – para ficar nessas poucas qualificações. A matéria de capa
intitulada ‘Risco de favelização’ discorre sobre a reivindicação da comunidade
quilombola da Ilha da Marambaia, localizada ao sul do estado do Rio de Janeiro,
de regularização de suas terras, garantidas pela Constituição. Ou, para ser mais
exata, sobre a opinião da Marinha do Brasil, instalada na região, a respeito
desse assunto.


Os fatos e detalhes dessa disputa encontram-se facilmente; há notas de
esclarecimento emitidas pelas partes envolvidas, além dos inúmeros documentos,
laudos, dossiês, decisões judiciais e relatórios do próprio governo que, se
lidos com o devido cuidado e ausência de má-fé, poderiam poupar tempo tanto dos
que se dedicam a distorcer os fatos quanto daqueles que procuram restabelecer a
verdade.


Tentemos aqui nos ater a uma avaliação da reportagem sob o ponto de vista
jornalístico. Se a propalada isenção jornalística não passa de mito, usado de
acordo com os interesses de quem a evoca, cabe-nos despi-la e expor as intenções
que orientam escolhas aparentemente simples. Um adjetivo aqui, um advérbio
acolá, uma construção verbal ali e voilá!, está dito sem estar escrito.
Mais que isso: está sugerido, induzido, criado em alguma região da memória,
pessoal e coletiva, primeiro passo para consolidar verdades fabricadas.


A referida matéria ocupou um espaço nobre na também nobre edição de domingo
do jornal: na parte inferior da capa, uma foto da Ilha da Marambaia ocupa três
colunas, com o título ‘Risco de Favelização’. A foto aérea, mostrando uma ilha
que parece virgem, praias e montanhas cobertas de mata densa, associada à
palavra favelização, compõe o abre-alas perfeito para as intenções da matéria:
atacar os quilombolas. Já à primeira vista, o ânimo do leitor é preparado, posto
em alerta para o que se segue.


‘Setenta Maracanãs’


A primeira das muitas perguntas que não querem calar é por que um editor
escolhe para nomear a matéria um título que é apenas uma suposição, medo,
possibilidade? A foto não mostra nenhum indício de que o tal risco seja real. O
título da matéria no interior do jornal não guarda nenhuma semelhança com a
chamada de capa, beirando o poético: ‘Eu tenho uma casinha lá na Marambaia’,
citando versos da canção de Rubens e Henricão.


A matéria, ao fim e ao cabo, é sobre o conflito entre duas partes, não
exatamente sobre os supostos desdobramentos deste embate. O temor militar
aparece no corpo da matéria, mas novamente sem qualquer justificativa concreta.
Mas está lá, como um mantra subliminar, para reforçar co-relações negativas na
memória (favela, fim do paraíso…). Voltaremos ao risco levantado pela Marinha
e secundado pelo jornal O Globo mais adiante; passemos à legenda, outro
primor.


Ela nos informa que parte da ilha está sendo reivindicada por ‘supostos
herdeiros de quilombolas’. Não satisfeito em duvidar da identidade daquele grupo
étnico, o texto continua o questionamento, com a pausa apenas de uma vírgula:
‘que dizem ter direito’. Então a Marinha supõe um risco e ele torna-se fato a
ser consumado; o direito constitucional (recentemente confirmado pela Vara
Federal de Angra dos Reis) dos moradores registra-se apenas com o algo que eles
‘dizem ter’?


Chegamos então aos números, sempre faraônicos. Em matérias sobre disputas de
terra é mais comum utilizar hectare como medida. Metros quadrados, entretanto,
parecem mais adequados quando podem ser contados aos milhões, claro. Mais
adequado ainda quando convertidos em curiosa e incomum unidade de medida:
maracanãs. A legenda informa que o território requerido pelos quilombolas
equivale a setenta daquele que ainda hoje é tido com o maior estádio do mundo.


Se a comparação se refere às dimensões do campo de futebol, qualquer estádio
oficial serviria como metáfora. Mais simples: 70 campos de futebol são
suficientes para expressar a idéia que se quer passar de muita terra para pouca
gente. Mas pra indignar o leitor contra os ‘supostos’ é necessários drama e
hipérbole, imagens mentais tão grandiosas quanto a foto da capa.


Serviço completo


Segue-se então a posição da Marinha, que contesta os laudos ‘da ONG’ – que
não precisa ter nome: o termo ONG já foi devidamente satanizado pela imprensa
antes e transformado em sigla para maracutaia. Retomando: a Marinha, então,
ofendida como a moça que tem a honra questionada, ‘ameaça deixar o local’. Deve
realizar ali tarefas imprescindíveis à nação e aos moradores, a ponto de usar
sua saída ou permanência como item de troca. E o grand finale: a retirada
da Marinha – como tropas que se retiram do campo de batalha – abriria caminho
para a tal ‘favelização’ de ‘um dos últimos paraísos ecológicos do Rio’.


Atendo-me às imprecisões da peça jornalística em questão – que evidentemente
encobre orientações político-editoriais –, seria altamente recomendável que a
Marinha e O Globo explicassem melhor a utilização do termo ‘favelização’.
Qualquer pesquisa preguiçosa informa tratar-se de um fenômeno social urbano, e a
Ilha da Marambaia, como o jornal mostrou em grande angular, está longe dessa
definição. Se ‘tornar-se favela’ significa ocupar desordenadamente terras a que
se julga ter direito, por que o termo só é lembrado quando aplicado às
comunidades afro-descendentes? Seria esta mais uma daquelas infames
coincidências que, uma vez consideradas racistas, tornam intolerantes aqueles
que a desnudam, e não os que a praticam?


Para concluir, cabe destacar novamente a diferença de ‘tom’ entre a chamada
de capa e a matéria em si. Não que possamos considerar a reportagem equilibrada:
claramente foi redigida a partir do ponto de vista da Marinha sobre o caso; é
desse lugar que o repórter escreve, ao lado do Comando Militar. Mas a artilharia
pesada concentra-se estrategicamente na linha de frente do jornal, a capa da
edição de domingo. Para cada leitor atento da reportagem, há pelo menos 50
outros que leram a caminho da padaria, passando preguiçosamente pela banca de
jornal; para cada um deles, mais 50 que, numa olhada de relance, registraram
apenas ‘ilha-risco-favela’. Serviço completo e, há que se reconhecer, bem-feito:
a chamada orienta o leitor antes da leitura, expõe em todas as bancas do país
uma versão sobre o assunto, constrói imagens poderosas no imaginário coletivo,
forja opiniões contrárias às populações tradicionais.


Nesse ritmo, não levará muito tempo para que a próxima reportagem ganhe a
retranca ‘Memória’, e o título, ‘Eu tinha uma casinha lá na Marambaia’.


***


O Globo responde


Paulo Motta (*)


Cara Helena Costa, tendo em vista seu artigo no Observatório da
Imprensa
, acredito que sejam necessárias algumas ponderações que,
prometo, ao contrário de suas afirmações, serão breves e apenas
substantivas.


A cobertura do Globo em relação à questão Quilombolas-Marambaia não
começou na recente edição, que originou seu artigo. Desde 2002, o
jornal vem publicando matérias sobre o tema. E sempre sobre o ponto de vista dos
reivindicantes. Não que isto seja jornalisticamente recomendável, mas
simplesmente não tivemos acesso ao ponto de vista da Marinha.


A primeira delas teve destaque tanto na primeira página, com a foto
de um menino numa praia paradisíaca, informando que a sobrevivência dele e
de todos os quilombolas da região corria grave risco, pois a Marinha ameaçava
despejá-los, quanto numa página interna inteira com o título – ‘Uma comunidade
ameaçada na Marambaia’ – e subtítulo –’Ministério Público denuncia a Marinha por
querer expulsar da ilha 90 famílias de descendentes de escravos’.


Outras muitas matérias se seguiram: todas mostrando o ponto de vista de
quilombolas, das ONGs envolvidas, do Ministério Público e do Incra. Alertamos,
inclusive, que a Marinha estava impedindo a entrada de funcionários do Incra na
região. 


Há pouco tempo fomos contatados pela Marinha, que queria expor seus pontos de
vista. Daí resultou a edição de que trata seu artigo. Não manipulamos
informação, não ajudamos a construir estereótipos e não reativamos
preconceitos. Tivemos, sim, a necessária isenção jornalística de, desta vez,
publicar o que defende o outro lado da questão.


As afirmações da Marinha, obviamente, não são de nossa responsabilidade, bem
como não eram as dos quilombolas, das ONGs, do MP e do Incra. E, pelo que
entendi, a Marinha reclama que o número de reivindicantes é muito maior do que o
de moradores da região: seriam já mais de mil e cada um reivindica uma área
equivalente a mais de 70 Maracanãs. 


Quanto ao processo de favelização, é fato que áreas ocupadas por instalações
militares (aqui no Rio, além da Marambaia, existem outras como Gericinó, o
terreno da Marinha na Praia Rasa entre Búzios e São João da Barra etc.) têm
estado livres da favelização e da especulação imobiliária. Desconsiderar a
realidade da ameaça de favelização em áreas públicas no Rio de Janeiro é sonegar
uma informação relevante ao leitor.


Acreditamos que o leitor do Globo teve acesso a todos os pontos de
vista contidos nesta questão e tem agora condições de, soberanamente, formar a
sua própria opinião.


Espero sinceramente ter contribuído de alguma forma com as minhas
ponderações. Quem se dispõe a fazer este trabalho tão importante que é
analisar a mídia deve se preocupar em ter um mínimo de informações sobre o
conteúdo do que vai analisar – e, com este objetivo, encaminho em PDF as cópias
das reportagens anteriores a que faço referência. 


Clique aqui para fazer download das reportagens em pdf (os
arquivos estão zipados em um só arquivo).


(*) Editor de Rio de O Globo

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Jornalista, mestre em Comunicação e Cultura