Um clichê do jornalismo: quando um cão morde uma pessoa, isso não é notícia. Quando uma pessoa morde um cão, isso é notícia. Essa máxima se aprende nos cursos de jornalismo. Todo estudante já ouviu isso de algum professor. Ou de vários.
Significa que além do que é novo, a mídia está interessada em representar os casos que fogem dos padrões, que se destacam de alguma forma. Representar isso significa também que o trivial, o cotidiano, o dia-a-dia não é relevante pra estar em manchetes.
Falando na prática: o jovem morador da periferia que leu os livros achados no lixo e passou em várias universidades é uma exceção. Você não verá notícias sobre os que tentam todos os anos, sem nenhum recurso, e não conseguem, porque isso seria comum demais, óbvio demais e acontece com tanta frequência que não rende notícia. É um cachorro que mordeu alguém.
O problema não é noticiar casos assim excepcionais. É bom ter inspiração. Mas o entrave é não conhecer a realidade. Quando o telespectador só conhece a história do menino que conseguiu, acha que o caso pode ser aplicado a todas as pessoas parecidas com ele. Não conhece a história dos milhares que tentam todos os dias e não chegam lá. Passa a achar que a exceção é uma regra.
“Mas você viu o caso do Fulano, que apesar de tudo conseguiu.” “Você não consegue porque não se esforçou o suficiente.” “Se ele conseguiu, você também pode”, repetem os que ignoram que a regra é justamente não conseguir. Há uma notícia e milhares de “não notícias”.
Quem se encaixa é exceção
Isso é agravado ainda mais pela falta de uma comunicação plural e que represente outras situações e visões de mundo. Aos poucos a gente vai achando que essas histórias são realmente únicas e verdadeiras. Deixa de conhecer outras realidades e elas passam a não mais existir. A gente vai achando que a regra é sair mordendo cachorros.
Não é à toa que comemoramos perfis diferenciados mesmo nos programas que mais odiamos. Ajudam a lembrar que existimos, que somos muitos, que temos direitos, que somos pessoas, que não temos que ficar paranoicos buscando ser exceções no meio das regras expostas. Ser representado significa validar nossa existência. Parafraseando de um modo superficial o trabalho de Donald Winnicott: “Quando vejo que sou visto, é então que existo”.
E quando nos tiram isso, omitem nossas histórias, nossos cotidianos a gente vai perdendo nossa identidade e entra em uma busca maluca pra se encaixar naquele caso excepcional e raro.
Em muitos contextos expostos pela mídia quem se encaixa é exceção. O que precisamos é mudar algumas regras e dar voz para as histórias que estão sendo sufocadas.
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Aldrey Riechel é jornalista