Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como o nazismo floresceu na América

Passados 70 anos da eclosão da II Guerra Mundial (1939-1945), a indústria cultural cumpre a função de propiciar aos interessados inesgotável oferta de livros, opúsculos e revistas temáticas sobre as origens e desenvolvimento da ideologia nazista, encarnada na pessoa de Adolf Hitler, fundador do Terceiro Reich e energúmena representação de um pretenso regime imperial totalitário que apregoava a redenção da raça ariana, entre outros mitos políticos propostos pelo engodo habilmente disfarçado sob a atraente bandeira do Partido Nacional Socialista.

Hoje é sobejamente conhecido o fascínio que o futuro führer alemão nutria pelo misticismo e sua ligação íntima com a racista sociedade Thule, para a qual foi recrutado ainda na juventude por Rudolf von Sebottendorf, um adepto da teosofia de Helena Blavatski que idolatrava a superioridade aristocrática da genuína raça nórdica.

Quatro anos antes do início das beligerâncias desencadeadas por Adolf Hitler, surgiu em Berlim (1º de julho de 1935), organizada por Heinrich Himmler, um dos principais dirigentes da SS, a Ahnenerbe, confraria de fanáticos cuja finalidade era legitimar as raízes arianas e disseminar o credo da Grande Alemanha. A entidade se propunha a investigar e propagar os valores da chamada ‘herança ancestral’ ariana, com base no fantasioso pretexto que a superioridade criativa do alemão puro emanava de um poder divino em operação desde os mais remotos cultos iniciáticos indo-europeus. Decerto, uma das inúmeras razões invocadas para justificar a barbárie cometida contra milhões de inocentes por um bando de genocidas alucinados.

O ‘perigo alemão’

O sinistro comandante dos camisas negras, Himmler, que ascendeu à posição de chefe da Gestapo (polícia política do Terceiro Reich) tinha afeição por experiências ‘científicas’ no campo das etnias, com o objetivo de desentranhar a herança dos antepassados. Essa e muitas outras insanidades dos cooperadores pessoais de Adolf Hitler constituem a peça de resistência do excelente livro Conspiração nazista nos céus da América, do escritor e jornalista Milton Ivan Heller, um dos melhores repórteres investigativos da imprensa brasileira, com várias décadas de militância em importantes veículos de Curitiba, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

O livro saiu pelo Instituto Memória do Paraná e constitui uma recomendação imperdível aos que procuram algo mais que a mera informação. Como o título indica, o escopo do autor foi entregar aos leitores uma alentada reconstituição histórica da tentativa empreendida pelos operadores da ideologia nazifascista de exportá-la para os países da América do Sul, em especial o Brasil, onde nos anos fatídicos em que o ventre do fanatismo gerava o monstro hediondo viviam muitíssimos descendentes dos primeiros imigrantes vindos da Alemanha.

Os primeiros colonos alemães chegados ao Paraná, segundo fontes pesquisadas por Milton Ivan, foram assentados às margens do rio Negro (1829), na atual divisa com Santa Catarina. O assunto já estaria nas cogitações do conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcelos, primeiro governante da província do Paraná, fundada em 19 de dezembro de 1853, 25 anos mais tarde. O tema ganharia relevância com o passar do tempo e tanto é verdade que na altura de 1900 o historiador Alfredo Romário Martins denunciava o ‘perigo alemão’ representado pela concentração de milhares de imigrantes de uma só raça na mesma região.

Política de homogeneidade étnica

Martins constatava que quase toda a imigração alemã fora dirigida para a região Sul, com forte presença no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ‘sem que os governos que se sucediam se lembrassem de dispersá-la pelo Norte ou interior do país, como convinha a uma distribuição previdente’. Milton Ivan teve o cuidado de recomendar atitude receptiva ao zelo patriótico de Romário ‘que incorporava a mentalidade da época’. Na verdade, o historiador se mostrava contrariado com a sistemática apologia da imprensa alemã sobre as aspirações ancestrais de supremacia e expansão territorial, assinalando no mapa do Brasil os três estados meridionais como colônias germânicas e garantindo à mãe-pátria que seus filhos ali residentes ‘estão empenhados engenhosamente no seu papel de traição’.

Em 1940, o debate sobre a nacionalização dos imigrantes e descendentes despertaria a atenção de Gilberto Freyre, pai da sociologia brasileira, que criticava a propaganda contra o idioma português e a cultura luso-brasileira. Milton Ivan assinala que a reprimenda de Freyre, em grande parte era dirigida ‘aos pastores luteranos, professores e outras lideranças teuto-brasileiras que reivindicavam uma identidade étnica articulada à origem germânica’. Freyre pressentia uma espécie de ‘propaganda silenciosa’, insurgindo-se ‘contra as atividades públicas e ostensivas do Partido Nazista no Brasil, principalmente nos três estados sulinos’.

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (3 de abril de 1940), ele se referiu textualmente ao geólogo Reinhard Maack, mais tarde professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que dentre outros feitos relevantes se notabilizaria como precursor da denúncia dos efeitos catastróficos da devastação florestal. Segundo o sociólogo, que enxergava um suposto etnocentrismo germânico no naturalista e o situava entre os propugnadores da política de colonização baseada na homogeneidade étnica dos núcleos alemães, ‘apesar de sua fleuma científica, Maack se exalta para exprimir sua revolta contra as recentes leis brasileiras sobre aqueles seus compatriotas que pretendem conservar-se alemães em nosso país’.

Criminosos, assassinos e ladrões

Freyre escrevia que ‘o Brasil se achataria em simples território bruto, sem nenhum relevo humano ou de cultura, exposto às afoitezas imperialistas de toda parte, no dia em que admitíssemos os mesmos direitos a uma cultura teuto-brasileira que os inerentes à cultura luso-brasileira’.

Em meio aos primeiros imigrantes alemães embarcados para o Brasil poucos anos depois de proclamada a independência, conforme a pesquisa de Milton Ivan, verificava-se a presença de ‘numerosos elementos identificados com o pangermanismo e oficiais do exército desejosos de contribuir para a restauração e a glória da Alemanha’, além de ‘refugiados das antigas colônias africanas, mendigos e presidiários de Hamburgo e Meclemburgo’.

A referência encontra-se no livro A aculturação dos alemães no Brasil, de Emílio Wilhems (Companhia Editora Nacional, SP, 1980), no qual se revela que ‘nenhum teuto-brasileiro de origem meclemburguesa gostaria de confessar essa sua origem porque a maioria dos meclemburgueses aqui residentes descendia de criminosos e vagabundos que em 1824 foram deportados para o Brasil’. O pesquisador Carlos Hunshe, que trabalhou sobre dados referentes à colonização alemã no Rio Grande do Sul, sublinhou que vieram para o Brasil, em meio ‘a soldados, agricultores e profissionais virtuosos’, muitos delinqüentes como os 321 condenados deportados entre 1824 e 1826. Os reclusos, incluindo mulheres, foram retirados das penitenciárias de Rostock e Hamburgo.

Representante plenipotenciário do imperador Pedro I, o major Jorge Antonio Schäffer foi responsável pelo recrutamento dos reclusos em condições ‘extremamente favoráveis e idênticas aos demais engajados’, segundo Hunshe. Um dos imigrantes, o jovem naturalista Eduardo Bösche, que embarcou no Wilhelmine em 12 de dezembro de 1824, no ano seguinte, escreveria: ‘No mesmo navio, Schäffer, que não conseguiu, apesar de seus esforços, engajar elementos bons, fizera embarcar dezenas de criminosos, assassinos e ladrões tirados das cadeias de Meclemburgo que eram levados a bordo ainda com as algemas nos pulsos.’

Consultor dos ‘galinhas verdes’

Um salto de mais de cem anos nos situa no início da década de 40 do século passado, quando é perfeitamente possível avaliar a relevante contribuição da descendência germânica ao desenvolvimento brasileiro. Maurício Wellisch publica em 1941, com apoio do Ministério das Relações Exteriores, uma crítica à ‘imigração descontrolada que prevaleceu no país desde o império, endossando muitos anos depois as advertências de Romário Martins’. Na época, o Brasil estava submetido a um regime autoritário, o Estado Novo de Getúlio Vargas e o referido texto, por certo encomendado, ‘reflete o clima de preconceitos e hostilidades que empolgavam o governo, e não apenas em relação aos imigrantes’.

A investigação de Milton Ivan mostra que desde 1932 o Partido Nazista teve existência legal no país, sediado no Rio de Janeiro, depois transferido para São Paulo e com núcleos atuantes em vários estados. A propaganda do partido e os inúmeros artigos publicados em jornais de língua alemã exaltavam o bordão ‘sangue e raça’, festejando ‘a unidade de 100 milhões de alemães em todo o mundo’, sem desprezar a apologia do ‘mito da origem racial comum e da superioridade ariana’. O braço direito do nazismo caboclo foi a Aliança Integralista Brasileira (AIB), liderada por Plínio Salgado, que logo passou a receber literatura de conteúdo fascista providenciada por italianos residentes em São Paulo e simpatizantes de Benito Mussolini.

O integralismo cresceu a tal ponto que Plínio ‘empolgou-se ao sentir que estava se transformando numa força nacional, uma bandeira e um líder, como Hitler e Mussolini em outras latitudes’. O cônsul italiano em São Paulo, um tal Mazzolino, depois embaixador no Uruguai, era o mais influente conselheiro do tosco arremedo do führer alemão. Milton Ivan lembra que o próprio ‘Hitler se interessou pela figura de Plínio Salgado e a AIB’, destacando Hans Henning von Cossel, ‘suposto adido cultural da embaixada alemã no Brasil’, como interlocutor privilegiado do chefete dos ‘galinhas verdes’.

Pangermanismo continua presente

A proliferação do nazismo obviamente foi mais intensa nos estados sulinos e se aproveitou da garupa do integralismo. A chamada quinta coluna se manifestava abertamente no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, em que pese muitas injustiças perpetradas contra indefesos cidadãos alemães. No Paraná, os expoentes da propaganda do Terceiro Reich que se batiam pela implantação da Alemanha Antártica, foram Werner Hoffmann, Hans Brüger, Hans Bennevitz, Albert Blum, Eugen Georg e Hans Gorbers, entre tantos outros que se valiam das entidades culturais e recreativas alemãs existentes em Curitiba, rebatizadas com nomes nacionais logo após a derrocada nazista.

Um dos mais notórios recrutas de Hitler a atuar no Paraná foi Alfredo Andersen, felizmente apenas um homônimo do pai da pintura paranaense. Suas primeiras operações se deram em Paranaguá, mas logo empalmou a chefia de propaganda do consulado alemão responsabilizando-se pelo controle do departamento de imprensa e rádio, alimentado pela distribuição de artigos e comentários laudatórios à superioridade ariana. O livro Mein Kampf era fartamente distribuído entre jovens casais alemães, além de revistas, jornais, folhetos e gravuras em alemão, inglês, francês, espanhol e português, trazidos da Alemanha sem embaraços alfandegários.

O terrível pesadelo que Hitler apregoava ter a duração de mil anos findou com a derrubada do fanatismo racista, embora tivesse custado a vida de 55 milhões de pessoas (militares e civis), sem contar a extensão das perdas na infraestrutura dos países envolvidos no conflito.

No fecho do livro desde já transformado em leitura obrigatória de todos os amantes do humanismo e da coexistência pacífica, o autor adverte para os indícios de que o antigo pangermanismo continua presente nos corações e mentes de muitos. ‘Até quando, ninguém sabe.’

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Jornalista, Curitiba, PR