Em sua edição de 29 de janeiro, a revista Época enfoca em uma das reportagens o drama do casal Demir Azevedo e Darcy Andozia. Foram presos durante o regime militar. Sofreram arbitrariedades e torturas.
Mais especificamente, evidencia-se o drama particular vivido pelo filho mais velho do casal, Carlos Alexandre, hoje com 37 anos. Na ocasião com apenas 1 ano e oito meses, foi vítima de tapas, safanões e choques elétricos por parte da polícia política (Deops), ficando preso por aproximadamente 15 horas, segundo relato de seu pai em vídeo na edição on-line da revista, de onde este artigo se baseia.
Seus pais eram militantes, ligados aos padres dominicanos e a Dom Paulo Evaristo Arns, atual cardeal emérito de São Paulo. Logo, há de se deduzir que comunistas eles não deveriam ser, mas suponhamos que fossem.
Demir Azevedo, jornalista e cientista político, passou por sessões de tortura, em pau de arara e tapões no ouvido, entre outras. Além das torturas psicológicas envolvendo o filho e a esposa. Na prisão, Darcy, pedagoga, não chegou a ser torturada como o marido, mas passou por várias pressões de ordem psicológica perpetrada pelos seus algozes.
A ‘bolsa indenização’
Quebrada física e emocionalmente, a família – que fora absolvida pela justiça da época – tenta recompor a sua vida. Muda-se constantemente, não só por questões financeiras, mas devido ao constante assédio dos agentes de segurança e da discriminação dos vizinhos. Demir está debilitado e com graves crises de depressão, resultado das torturas. Cabe a Darcy a manutenção da família.
Esse drama familiar, complexo, a meu ver, serve apenas de pano de fundo, para o assunto principal que a reportagem procura evidenciar. O drama pessoal do garoto Carlos Alexandre, que hoje, já homem feito, guarda dentro de si todas as seqüelas dos acontecimentos acima relatados e que se refletem em vários distúrbios de ordem emocional, como fobias e retraimento social, dentre outras. De tal sorte que não consegue se manter financeiramente, pois tem dificuldades para sair de casa e se relacionar com pessoas. Carlos Alexandre foi beneficiado pela Lei da Anistia com a indenização de 100 mil reais pelo Estado brasileiro.
A meu ver, a tortura em si – emocional ou física – não se justifica de forma alguma. Muito menos aquela organizada e perpetrada pelo Estado. Um crime é sempre um crime. Seja quem for seu autor, seja quem for a vítima. O fato de uma criança sofrer abusos por parte de policiais não deixa de ser revoltante pelo simples fato de ser uma criança. Muito embora a reportagem tenha buscado resgatar mais o sofrimento da família envolvida no episódio, percebe-se, pelos comentários o incômodo causado pelas indenizações proposta pelo Estado brasileiro àqueles que sofreram perseguições políticas na época do regime de exceção que vigorou no Brasil de 1964 a 1983 que se materializaram em indignação a indenização de 100 mil reais paga a Alexandre.
A matéria omite, por exemplo, que a tal ‘bolsa indenização’ é fruto de uma proposta conjunta entre governos (não começou em Lula) e as demais instituições democráticas desse país. Dando a entender àqueles menos informados que o presidente Lula e seu partido estão por trás de tudo a manipular dinheiro e indenizações.
‘Tentando extorquir da viúva’
Destaco alguns comentários. Um curioso mosaico de opiniões.
‘Claudio’, em 30/01/2010:
15:29:06 ‘Muito fantasiosa a matéria. Estão querendo abrir questões com este tipo de matéria. Vai acabar em confusão.’
15:51:46 ‘Comunista continua sendo a pior espécie de gente. Quanta mentira.’
16:07:00 ‘Muito bonito esse assalto aos cofres públicos. A União já gastou 34 bilhões em indenizações sobre atos do regime militar. E as gerações atuais? E os 65 milhões de miseráveis, que vivem abaixo da linha suportável da existência humana? Ninguém lembra.’
16:09:55 ‘Alguém do PT se lembra do massacre de Canudos? Algum sobrevivente foi ajudado? E o ataque feito por Setembrino de Carvalho contra os Cor de Cuia em Santa Catarina na Guerra do Contestado? Eles só queriam as terras dos colonos estrangeiros.’
16:13:03 ‘O PT arrumou um jeito da assaltar os cofres da União. Mantendo a bolsa ditadura. E as gerações atuais e futuras? Vão continuar sendo espoliadas. Não se muda o passado. Temos 65 milhões de miseráveis para cuidar.
16:19:26 ‘Desafiaram o regime da época? Foram corajosos, valentes. Aceitaram dinheiro do Estado? Acabou-se tudo. Fica o mercenarismo.
17:51:36 ‘Temos 75 mil desabrigados pelas chuvas, 131 aguardando pagamento de indenizações para as barragens. Algum dos `heróis´ do regime militar está lutando por eles? Só tentando extorquir da viúva.’
‘Tudo que é vagabundo vira vítima’
Sobrou para o Greenhalgh.
João Carlos em 30/01/2010:
16:27:08 ‘Muito dinheiro para uma grande mentira. É assim que vão roubando. O advogado esperto, muitas vezes o Greenhalgh, pega um maluco qualquer e o convence de que pode ganhar alguma grana do governo. Só faltou dizer que um bebê de 1 ano e oito meses se lembra dos torturadores e tem pesadelos com eles.’
16:31:44 ‘Rute, este caso é claramente mentiroso. Sou médico, apesar de não ser psiquiatra, mas não acredito numa única vírgula desse artigo. Estão forçando a barra para que o seu Greenhalgh, a quem eu conheço e considero um bandido, ganhe mais dinheiro. Já está mais que milionário.’
Aqui, mais pérolas.
Membro do CCC. 30/01/2010. 15:45:43 ‘Todo esquerdista é um sociopata. Por que este chorão não conta que os papaizinhos dele, junto com um outro bando de terroristas, queriam impor um ditadura comunista – nos moldes de Cuba – no Brasil?’
Robson. 30/01/2010. 15:57:45. ‘Comunista bom é comunista morto.’
Eduardo.30/01/2010. 16:42:51. ‘O que eu faço para entrar nessa boquinha?’
Jorge. 30/01/2010. 17:09:20. ‘Essa de ficar com trauma por tanto tempo é balela. Mais um parasita que o Lula vai encostar nos bolsos dos brasileiros.’
E por fim…
Trabalhador. 30/01/2010. 20:25:13. ‘Agora tudo que é tipo de vagabundo vira vítima do regime militar. E nós é que temos de pagar. Uma coisa eu me lembro muito bem: quem queria trabalhar, nunca se deu mal no regime militar. Aliais, só cresceu. Não acredito que as crianças foram agredidas no regime. Mas vagabundos, sim… e deveriam ser até hoje.’
Candidata na tortura
Não se discute aqui o direito de cada um discordar ou não de indenizações, mesmo tendo como motivação um preconceito fruto do desconhecimento da história recente do país e da América Latina. Mas, o modo como estas opiniões foram expressas, com escárnio e ironia, demonstra uma grande insensibilidade pela dor alheia. Quanto ao sentimento de revolta com relação a Alexandre que ‘abocanhou’ 100 mil reais, em que pese possa ser compreensível – em uma sociedade onde a sorte nas loterias é a única esperança de progresso pessoal possível –, não é justificável. Mesmo vivendo em uma sociedade onde tudo é balizado pela lógica do mercado, inclusive a dor e dignidade humana.
Seguindo a mesma lógica, somamos o fato da ministra Dilma – candidata do governo à presidência da República – ter sido presa e torturada por uma possível ‘ditabranda’, poderemos concluir que ela – ministra Dilma – mereceu: afinal, é comunista e conseqüentemente terrorista e mentirosa por natureza. Afinal, como afirmou o senador Jose Agripino Maia (DEM, antigo PFL), se a ministra Dilma Rousseff conseguiu mentir até sob tortura, imagine agora que está tranqüila e recuperada.
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Psicólogo, Curitiba, PR