Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Concessões públicas passam de mão em mão

Em seu artigo sobre o escândalo das concessões, publicado recentemente neste Observatório [ver ‘O escândalo das concessões que ninguém vê‘], Alberto Dines trouxe à tona, novamente, uma questão importantíssima que aflige a Comunicação no Brasil há décadas. A história tem nos mostrado que as concessões públicas em radiodifusão são um tanto sombrias, sem muita transparência, tanto que emissoras de televisão e rádio são vendidas e continuam a operar normalmente, ou seja, a concessão simplesmente troca de mãos sem levar em consideração o comprador ou mesmo o projeto de programação a ser desenvolvido, o que fere a Constituição.

Nossa Carta Magna de 1988 proíbe a formação de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação e estabelece que as emissoras devem ‘promover programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, procurando estimular a produção independente, visando à promoção da cultura nacional e regional’.

A Constituição, elaborada num período em que a sociedade e a cultura já eram diretamente influenciadas pela mídia, especialmente a televisão, procura garantir que esse meio de comunicação seja utilizado como serviço, auxiliando a escola e demais instituições na educação. Ao estimular a produção independente e regional, reage contra a proposta iniciada nos anos 60 de integração nacional via produção centralizada. Contudo, a regionalização ainda está longe de se tornar uma realidade, pois as emissoras locais dificilmente conseguem se manter e ter capacidade de investimento frente à formação das grandes redes que concentram a publicidade e a audiência.

Venda da Record

Até 1988, o direito de conceder, renovar e cassar licenças de radiodifusão estava a cargo do Executivo Federal. Depois de promulgada a nova Constituição é que o direito passou para o Congresso Nacional. Isso quer dizer que da década de 1950 – especialmente durante o governo Kubitschek e até o governo Sarney – centenas de canais foram concedidos atendendo a motivações de interesse pessoal e político-partidário. Ainda assim, a responsabilidade passada ao Congresso Nacional não alterou significativamente essa realidade. Olhemos para o passado recente e lembremos de algumas negociações suspeitas publicadas por revistas e jornais da época a respeito das concessões.

No início da década de 1990, o grupo Silvio Santos vendeu os 50% que possuía da TV Record. A família Machado de Carvalho, detentora da outra metade, também vendeu sua parte. Até então, pouca gente sabia que Silvio Santos era detentor de parte da Record. Naquele momento ainda não se sabia também que o comprador tinha sido Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. A Record, fundada em 1953 por Paulo Machado de Carvalho e João Batista do Amaral, depois de anos áureos, estava passando por um mau momento.

Ainda nos anos 1970, já em crise, João Batista do Amaral vendeu sua parte para o grupo Gerdau. Na família Machado de Carvalho, os herdeiros não se acertavam na administração e Antonio Augusto Amaral de Carvalho, o Tuta, grande mentor dos programas de sucesso da Record, saiu da emissora e comprou dos irmãos a Rádio Panamericana SA, em 1973. Os 50% da Gerdau foram vendidos a Laudelino Seixas, um fazendeiro paulista, que repassou a empresa para o grupo Silvio Santos em 1976. Silvio e Paulo Machado não se davam bem, o que atrapalhou a administração da Record por décadas.

Processos e homologação

Se o governo Sarney manipulou as concessões de emissoras por motivos políticos, com Fernando Collor não foi diferente, pois ele sabia que tinha nas mãos um poderoso instrumento para obter alianças e excluir adversários. No seu governo, pela falta de uma legislação para a TV por assinatura, as concessões foram distribuídas de acordo com a vontade do presidente. A brecha estava na interpretação do capítulo V da Constituição de 1988, que dizia que a distribuição de canais deveria seguir critérios de interesse social, porém se interpretava que a TV por assinatura era um serviço de natureza privada e, portanto, valeria o Código de Comunicação de 1962, que conferia poderes ao presidente para a distribuição de concessões. Um exemplo dessa forma de agir pode ser verificada no caso de um empresário e vereador pelo PRN, dono de uma transportadora em Santos:

‘Em fevereiro deste ano, ele estava num elevador do Ministério da Infra-estrutura quando um amigo o brindou com um par de informações interessantes. […] O governo estava disposto a fechar as portas para as novas concessões por aqueles dias e ele teria no máximo um mês para apresentar seu projeto e se habilitar a ser proprietário de uma tevê a cabo. […] Ele precisou de apenas 21 dias para confeccionar não um, mas sete projetos. Todos foram aprovados. […] ‘Penso nos amigos e nas sociedades que poderei fazer no futuro.’’ (IstoÉ Senhor, 31 de julho de 1991)

Políticos pareciam ter preferência. Por exemplo, Antonio Carlos Magalhães e José Sarney, nos últimos instantes do governo desse último, conseguiram concessões de cabo na Bahia e no Maranhão. Já na TV aberta, regulamentada, a influência do presidente se deu nos casos da Record, CNT e Manchete. O estranho na questão envolvendo a Record é como Edir Macedo, com vários processos em andamento, conseguiu a homologação da transferência de concessão.

Contrato de gaveta

Também nos anos 90, o grupo Bloch vendeu para o grupo paulista IBF, de Hamilton Lucas de Oliveira, a TV Manchete. O grupo IBF (Indústria Brasileira de Formulários) comprou 49% das ações da família Bloch. As negociações foram mediadas por Nelson Marchezan, então secretário nacional das comunicações. A venda foi no valor de 105 milhões de dólares, sendo 90 milhões em dívidas com instituições financeiras federais. Com a compra, o IBF, também detentor de 40% da TV Jovem Pan, herdou 2.500 funcionários. A Manchete era a terceira maior rede, com 36 emissoras afiliadas.

As negociações, contudo, foram tensas, porque o grupo IBF era acusado de envolvimento com Paulo César Farias, o PC, tendo recebido benefícios para ganhar a concorrência para impressão das ‘raspadinhas’ da Caixa Econômica Federal. As acusações contra o grupo serviram para que as Organizações Globo fizessem pressão sobre o governo para impedir o negócio. A Globo não via com bons olhos a aproximação do governo com outras emissoras, sinal de que ela estava perdendo espaço. Havia também rumores de que o grupo IBF mantinha negócios com a rede OM e estaria buscando algum tipo de união das duas emissoras.

Alguns meses depois da venda, o IBF começou a ter problemas financeiros, atrasando o pagamento de dívidas e salários. Enquanto o grupo era responsabilizado, a família Bloch, detentora de 51% das ações, agia como se não fosse mais dona do empreendimento, o que trouxe à tona a hipótese de que, na verdade, a venda tivesse sido total, através de um contrato de gaveta, evitando assim que a transação passasse pelo crivo do Ministério das Comunicações e do Congresso.

Tema antigo e espinhoso

A outra emissora do grupo, a TV Jovem Pan, estava agonizando, mas conseguia cumprir as 16 horas diárias de programação. Seus funcionários acreditavam que a idéia era fechar a emissora e transferir seus equipamentos de última geração para a Manchete. Os três sócios da Pan – João Carlos Di Genio, Antônio Augusto Amaral de Carvalho (Tuta) e Hamilton Lucas de Oliveira – não conseguiam manter um diálogo amigável na administração da empresa. Corria também o boato de que Tuta havia vendido sua parte para Oliveira, pois o IBF pagava 70% da folha da Jovem Pan. Em setembro, o IBF beirava a falência. A CPI do caso Collor descobriu uma série de contas ilegais usadas pela empresa. Detentora de 40% da TV Jovem Pan, o escândalo acabou envolvendo a emissora também endividada.

Tentando salvar a emissora, o grupo Bloch arrendou a programação para a Igreja Renascer em Cristo, que arcaria com as finanças da emissora por 15 anos. Mas a igreja não honrou sequer a primeira parcela do contrato e a Manchete retornou aos Bloch. Em maio de 1999, concretizou-se a venda da Rede Manchete para o grupo TeleTV, organização presidida pelo empresário Amilcare Dallevo Júnior. Era o fim da Rede Manchete de Televisão e o início da Rede TV!

Outro caso interessante foi o da CNT, a mesma Rede OM que havia sido criada com apoio do governo Collor e PC Farias em 1992. Com a crise e 30 milhões de dólares em dívidas, a OM recebeu financiamento do banco Bamerindus e se transformou em Central Nacional de Televisão (CNT), tendo José Eduardo de Andrade Vieira, dono do Bamerindus e então ministro da Agricultura, como proprietário de 49% das ações da emissora. A outra metade permaneceu com José Carlos Martinez. Pouco mais tarde, Martinez comprou a parte de Andrade Vieira.

Como podemos perceber, o negócio das concessões é antigo e tema espinhoso para os três poderes, ameaçando a democracia na comunicação. Contudo, parece que para nós, que assistimos televisão, mais importante que pensarmos no jogo de poder nas concessões é sentarmos em nossas poltronas e comandarmos com total autonomia e liberdade o controle remoto.

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Jornalista, doutor em Comunicação, Porto Alegre, RS