No programa de rádio do OI (12/2/2007), Alberto Dines perguntou: quem banaliza a violência, a imprensa ou a impunidade? Ora, a impunidade – filha e mãe da disparidade social – é a maior violência porque mutila a sociedade nos três tempos verbais. Quanto à imprensa, note-se que não é só jornal de R$ 0,50 que se imprime com sangue.
Está aí Veja a perguntar na capa: ‘…Não vamos fazer nada?’ Nas páginas internas, cede à tara pela morbidez em detalhes que outros veículos rondaram, insinuaram mas acabaram omitindo, em respeito à dignidade da vítima: ‘…dependurado, preso pela barriga…’ (p.46); ‘…a cabeça bateu na proteção da calçada e o sangue espirrou na minha roupa…’ (p.47); ‘…rastros de sangue e massa encefálica…’ (p.48); ‘…não tinha mais a cabeça, os joelhos nem os dedos das mãos’ (p.49); além de mais um croqui do trajeto, do choro da família, do último desenho escolar da vítima etc.
O clamor da ‘sociedade’
O que causa asco (a mim, pelo menos) é a revista, fiel à sua bandeira anti-esquerda (pró-ultracapitalismo, anti-antiamericanos etc., por razões que a história do centenário Civita explica), não deixar, nem neste momento, de vender a consciência social fast-food e self-service, que cozinha ao gosto dos setores mais alienados, reacionários, egoístas e insensíveis da classe média, que têm nela, Veja, seu catecismo semanal.
Ao enxertar na matéria ‘objetiva’ trechos editorialescos em itálico, compara a ‘proliferação do mal bolchevique pelo mundo’ à crescente criminalidade no Brasil; rejeita ‘explicadores’ do drama social (entre os quais sugere, por via de um de seus blogueiros, estar o Chico Buarque, autor de ‘Meu guri’, canção de 1982, composta noutro contexto) em favor dos ‘especialistas’ que a revista escolheu para confirmar suas teses (às p.50 e 51, até amenas diante do que poderia ensejar um clamor ‘da sociedade’ por uma pena de morte, ou um olho-por-olho); e, não surpreendentemente, menciona Hitler nesse (p.46) e em outros três textos da mesma edição (p.109, p.110 e p.114), dedicada ainda, noutros pontos, a atacar o Irã de Ahmedinejad (p.69) e Hugo Chávez (p.82), e a elogiar a gestão privada do ensino público (p.94) e até a face negociante do U2 do ‘engajado’ Bono (p.44).
Propaganda ideológica
Sim, os ‘meus guris’ só existem enquanto figura e citação, destinadas a desqualificar o próprio debate, que deve ter fervido quando alguém notou a exibição, pelos policiais, das presas – os autores confessos do crime crudelíssimo, logo capturados, à maneira de cavalos (ou escravos), à venda dos quais se mostram os dentes. Mas não se trata de questionar os direitos individuais, já exageradamente vilipendiados de baixo ao alto da pirâmide; nem se vale a pena defendê-los, ajustá-los ou suprimi-los. É o Terceiro Reich, é a Guerra Fria, é o século passado que enchem a revista. Desta vez, mal foi possível esconder a mera sede de sangue dessa publicação ‘formadora de opinião’.
É um panfleto sórdido, essa Veja, distribuído sobre o cadáver da criança de classe média cuja vingança parece querer estimular. Certamente, assim vai ter mais material sanguinolento para intercalar entre as fofocas de celebridades, ‘guias’ de consumo, em meio aos quais disfarça sua muito bem paga propaganda ideológica. Nojento. E dispensável. O que há a fazer é evitá-la e esperar que morra junto com os que a endossam, para o bem da ‘verdade’, da justiça e da democracia que ela mentirosamente diz defender.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ