Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Considerações éticas sobre a repercussão da entrevista

As ‘Páginas Amarelas’ com o senador Jarbas Vasconcelos à revista Veja (‘O PMDB é corrupto’, edição 2100, de 18/2/2009; ver aqui, para assinantes), dizendo que o PMDB só pensa em cargos e pratica nada menos que a corrupção desenfreada, continuam a render e a render. O Jornal Nacional de segunda-feira (16/2) mostrou o peemedebista, há 42 anos no partido, reafirmando suas caracterizações, enquanto Sarney, atingido pelas declarações do dissidente, afirma preferir o silêncio. Na mesma segunda, na Folha de S.Paulo, Fernando Rodrigues pede, com razão, que Jarbas aponte nomes envolvidos nas irregularidades que denuncia e, no Globo, Ricardo Noblat diz que ele deu ‘a mais devastadora entrevista’ concedida por um político ‘nos últimos dez anos’. Vem mais por aí.


Não adianta dizer que as palavras do senador pernambucano decorrem de uma jogada de marketing político para promovê-lo. Elas são mais do que isso. São uma explosão, mais que um desabafo tão calculado assim. Jogadas de marketing procuram lidar com efeitos controláveis, ao menos controláveis aos olhos de seus artífices, e essa entrevista destampa um poço de demônios que correrão soltos pelos gabinetes. Sem controle de ninguém. Não dá para ter segurança quanto às conseqüências. Só o que dá para saber é que Jarbas disse a verdade, a sua verdade, no mínimo, uma verdade que não suportava mais guardar. Essa entrevista é uma peça jornalística respeitável. Aqui, porém, não vou cuidar de nenhuma análise das ‘amarelas’. Vou tratar apenas da repercussão ética que elas começam a alcançar.


Agentes da injustiça


Os caciques irão amaldiçoar o entrevistado. Certamente, já o fazem, entre si, como quem execra um traidor. Comecemos, então, por aí. O que é um traidor? Ou, melhor que isso, o que é um traidor na política democrática? A diferenciação há de ser feita porque a nossa política tem o hábito asqueroso de chamar de traidor aqueles que se insubordinam contra os esquemas obscuros – tanto os que se insubordinam cedo como os que se insubordinam tarde, ou tarde demais. A ética dos que fazem agora o papel de apunhalados pelas costas não é bem a ética da política, mas a ética do crime. O ideal ético dessa gente é aquele que superlota as prisões.


As cadeias estão repletas de bandidos que não traem seus chefes, porque não os entregam à Justiça. Para muitos caciques, são o modelo perfeito da lealdade. No crime, delatar é pecado mortal. O bandido não fecha a boca por heroísmo ou coragem, mas pela certeza de que morrerá se falar o que sabe. Ele não é leal por virtude, mas por covardia. Essa é a ética da máfia. Dos traficantes. É também, por mera extensão, a ética dos corruptos e dos corruptores. É, enfim, a ética dos políticos que se especializaram nos dinheiros não declarados, no tráfico de influência fantasiado de gentilezas protocolares e até excessivas, a ética dos que, em cima do palanque, xingam de ladrões seus opositores para depois recolher alegremente sacos de dinheiro às escondidas. Por isso, embora Jarbas Vasconcelos não tenha ‘entregado’ o nome de ninguém, será chamado de traidor pelos caciques.


Agora, se olharmos essa confusão por outro ângulo, quem é o traidor? É o que denuncia, mesmo que tardiamente, ou o que mercadeja votos, o que acoberta os apaniguados, o que comete crimes em nome de uma tortuosa alegação de justiça social, ou em nome do partido? Quem é o traidor? O que se levanta contra a lambança e se recusa a cerrar fileiras com espertalhões, ou o que trai, sistemática e reiteradamente, a confiança dos eleitores pobres de espírito (e de matéria)?


De toda sorte, não se fará aqui o elogio da traição, pois não se trata disso. Não é o caso de afirmar que traidor que trai traidores terá cem anos de perdão. Como os outros, ele também não será perdoado. Trata-se apenas de saber que a métrica moral dos ora ofendidos é inócua. Eles não têm o direito de se dar ares de injustiçados, agentes da injustiça que sempre foram. É bom, é merecido que eles escutem o que Jarbas Vasconcelos tem a dizer em público, ainda que de forma um tanto vaga. Não, não são eles os traídos. Os traídos, nessa comédia de mau gosto, somos nós.


À luz do sol


Isso mesmo: os traídos somos nós, nós que vimos a política brasileira se transformar numa selva em que a seleção natural começou a operar às avessas. Vimos triunfarem os homens públicos pelos seus defeitos, por aquilo que carregam de menor, não por suas virtudes. Vimos a política ser reduzida a um ambiente desumanizado, que repele os ideais de bem comum e de fraternidade. Vimos o jogo do poder se esgarçar em jogo de sombras, na antítese mais abjeta do que pretenderam Platão, Aristóteles ou mesmo Weber.


Essa seleção natural às avessas, que não evolui nem deixa evoluir, tem o dom de fantasiar o muito velho em simulacro de renovação – e o velho, nesse ponto, significa o vício, a perpetuação do patrimonialismo na era digital, a complexificação da corrupção com juros compostos e derivativos cambiais.


Nesse mundo, o antigo deglute a aspiração de emancipação e a devolve como farsa carnívora. Para sobreviver dentro dele, o sujeito precisa reproduzi-lo para além do seu próprio corpo. A isso nós assistimos impassíveis. Sim, somos nós os traídos. Nós, atônitos, atordoados, sem ter para onde correr, sem ter como desativar a besta.


Não defendo Jarbas Vasconcelos. Não o aplaudo. Ele que diga à imprensa tudo o que sabe e que outros o sigam, que falem também. Que se defendam com a palavra. Está com eles a palavra. Também não renego a política, apesar de tudo. Acontece que hoje, a única política que vale a pena é aquela que seja capaz de transformar, mais que a sociedade, a própria política – e isso, prezado leitor e leitora, é com informação de qualidade que se fará.


Vivemos um momento triste, é verdade, mas ao mesmo tempo vivemos uma grande oportunidade para que o jornalismo cumpra sua mais alta vocação – a de formar cidadãos e de expor ao sol o mal que ainda prospera no escuro. Acima dos partidos e das contingências dos caciques, está a fonte do poder: o cidadão. É nele que ainda vale a pena ter esperanças. Por isso, vale a pena jogar energia no jornalismo. Que venham outras entrevistas bombásticas. Que venha mais repercussão. Que outra ética se instale sobre o silêncio dos culpados.

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Jornalista, professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade