Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Corrupção, a palavra proibida

A matéria vai direto ao ponto. A primeira pergunta que os jornalistas fazem aos médicos entrevistados é: ‘Caso um cirurgião tivesse interesse comercial na distribuição das próteses mamárias de uma marca determinada e, ao mesmo tempo, a sugerisse como a melhor opção a suas pacientes, haveria conflito ético?’ Eis a resposta: ‘Não vejo problema nenhum!’ O mais surpreendente desta prova de insensibilidade moral é que a frase não é um depoimento anônimo. A resposta é dada por um dos cirurgiões plásticos mais reconhecidos do país.

Trata-se da matéria de capa da revista argentina Noticias (‘El peligroso negocio de las siliconas‘) que simplesmente analisa uma prática profissional habitual do jeito jornalístico. Ou seja, com fotos, nomes e sobrenomes, neste casso de dois dos cirurgiões plásticos mais famosos do país vizinho. Nas outras editorias, uma reportagem assim não seria surpreendente, mas nos assuntos médicos a procura da verdade não é habitual. Será o início de uma nova era nas matérias sobre saúde?

Produzir matérias de medicina para o grande público é – no mundo todo – falar de doenças, remédios e procedimentos. Quanto mais ‘milagrosos’ e surpreendentes, melhor. Alguém que conhecesse o mundo médico só pela mídia pensaria que problemas há unicamente nos hospitais públicos, ou com os planos de saúde. E só. Um médico tem que matar, estuprar ou ao menos seduzir a quem não deve, para não sair bem na foto. A profissão não tem a presunção de culpabilidade da classe política, por exemplo. Trata-se da imunidade que confere o jaleco branco.

Prática da ‘bola’ está estabelecida

A matéria argentina mudou essa visão idílica. Os jornalistas Andrea Gentil e Daniel Seifert reconhecem que não há impedimentos legais para a prática de uso de confiança com fins lucrativos, porém o assunto merece ser abordado do ponto de vista ético. Neste caso, os médicos são suspeitos de recomendar próteses mamárias proibidas em muitos países, mas até então permitidas em seu país, e vendê-las eles mesmos e até a um preço superior ao da tabela com intermediação de uma importadora de fachada.

No Brasil, a revista Veja também tocou várias vezes em assuntos da ética médica. Em uma das últimas matérias de capa, os jornalistas analisam o novo código de ética médica no quesito ‘autonomia do paciente terminal’ e informam o que realmente acontece na prática. Olhando diretamente para a câmera, médicos e pacientes contam a verdadeira história, diferente da que figura nos livros. Mas é bom saber que o mesmo regulamento profissional veda ao médico brasileiro o exercício mercantilista da medicina, especificando algumas situações, entre elas o aproveitamento financeiro das situações decorrentes da relação médico-paciente. Contudo, neste assunto, a mídia nem sempre consegue contar a verdadeira historia. A pergunta é: ‘Por quê?’, ‘Será que ninguém quer ser o primeiro a tirar a profissão médica do pedestal?’

O assunto corrupção médica não é só um boato. Ano passado, a Veja São Paulo (16/9/2009) fez uma excelente pesquisa sobre tal assunto. Segundo a matéria, a relação com a indústria farmacêutica já foi promíscua e hoje está regulamentada pela Anvisa. Porém, os fabricantes de prótese parecem ter ficado de fora da faxina ética. A Vejinha reproduz uma ‘mea culpa’ corporativo esclarecedor, porém anônimo. ‘A prática de receber a chamada `bola´ da indústria de equipamentos está estabelecida entre alguns médicos que trabalham com órteses e próteses’, diz um ‘doutor’. ‘Um stent (dispositivo que aumenta o calibre das artérias) custa cerca de R$ 10 mil e o profissional ganha de 10 a 20% de comissão.’ Na ortopedia, os representantes de empresas… costumam nos pagar de 3 a 10% do valor das próteses, assevera outro. ‘Muitos médicos que recebem comissão acreditam não estar infringindo a ética porque não fazem procedimento sem necessidade’, resume um terceiro.

Um brinde à nova era da informação

Qual é a causa para que nem que a revista líder do Brasil, conhecida e reconhecida pela coragem, nem os seus concorrentes, falem abertamente sobre a questão da corrupção médica e divulguem os nomes? Falta de provas? De jornalistas capazes de apurar melhor a matéria? Medo? Interesses? Talvez a resposta esteja simplesmente na resposta de um clínico geral que, na Veja São Paulo foi apresentado como dr. Tudo. ‘Durante muito tempo, o médico era visto como um semideus.’ Felizmente, ele depois acrescenta: ‘Agora, isso tem menos força… Antigamente, você dizia uma coisa para o doente e ele não contestava. Hoje não é assim. O médico não tem mais domínio sobre a informação. Os pacientes têm acesso a ela e questionam tudo.’

Por enquanto, a democratizaçao da informação médica é só um desejo. No mundo todo é reconhecida a importância da mídia impressa como fonte de conhecimento para melhorar a qualidade de vida, porém até os jornais e revistas líderes têm muito potencial de melhora. Um grupo de médicos fez uma pesquisa na Itália a respeito da difusão das notícias de saúde na imprensa escrita, e as conclusões foram desalentadoras: ‘A qualidade da informação é pobre… com tendência a ignorar e minimizar riscos.’ Sobre o assunto tratado neste texto, a avaliação italiana é contundente: na metade dos casos, os jornalistas científicos não mencionaram a existência de conflitos de interesse.

Custe o que custar, é preciso começar a colocar o fio do bisturi no local certo. Faço um brinde à chegada da nova era da informação, com a palavra de ouro: ‘Saúde!’

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Bióloga e jornalista especializada em saúde