Um estuprador ataca casais nas areias de Itapoá, no norte de Santa Catarina. Os casos provocam pânico, ganham os jornais e confundem o leitor. São divulgados os retratos falados e os nomes dos suspeitos e nem mesmo quem está morto escapa. A ânsia de encontrar o culpado e a pressa do fechamento diário fazem com que acusados sejam tratados como criminosos nas páginas dos jornais.
Evidências como provas
A primeira menção aos crimes de Itapoá vai aparecer em A Notícia no dia 10 de setembro. Sob o título ‘‘Maníaco de Itapoá’ leva pânico a casais no Norte’, o jornal explica que ‘seis mulheres foram violentadas na frente de seus parceiros (…) depois que o casal foi rendido pelo criminoso que age sozinho, sempre à noite e armado de um revólver’. A edição traz ainda que ‘(…) foram detidos dois suspeitos, liberados porque não houve reconhecimento das vítimas’.
O assunto volta a aparecer nas páginas de AN no dia 14. A nota ‘Maníaco faz nova vítima em Itapoá’ descreve como ocorreu este caso. No dia 16, matéria intitulada ‘DEIC divulga retrato falado de estuprador’ aponta as características do criminoso: ‘Ele é um homem moreno, cabelos pretos, olhos escuros, com altura entre 1m68 a 1m70, dentes bons e aparenta ter entre 20 e 25 anos’. O jornal ainda reproduz o retrato falado.
No dia 17, surge a primeira chamada de capa e o primeiro nome de suspeito. A manifestação da população tem destaque, mas a sub-retranca ‘Homem morto pode ser estuprador’ chama a atenção do leitor. No texto, pode-se ler que ‘José Ramos Neto, 35 anos, foi encontrado morto com dois tiros a 200 metros de sua casa. Já havia suspeitas de que ele poderia ser (…) o ‘Maníaco de Itapoá’, no entanto, não há nada de concreto que possa sustentar a hipótese’.
Apesar de afirmar que não há nada de concreto contra o suspeito, o jornal traz que ‘na comunidade, Neto era conhecido como ‘um homem que não respeitava mulher de ninguém’. Há semelhanças entre a fisionomia dele e a do retrato falado divulgado pela polícia (…). Na sexta-feira teria ameaçado uma mulher, dizendo que iria estuprá-la’.
No dia 18, mesmo com a chamada de capa ‘Identidade de estuprador ainda desconhecida’, o jornal volta a trazer informações sobre o suspeito: ‘Em 2001, ele chegou a ser preso sob a suspeita de ter estuprado uma mulher em Itapoá. Também há informações – ainda não confirmadas oficialmente – que o agricultor teve problemas com a polícia no Paraná e no Paraguai’. Se as informações eram incertas, não deveriam ter sido utilizadas com mais cuidado pelo jornal?
Preocupação também deveria ter ocorrido antes de AN publicar, pela segunda vez, um dado que pode não passar de um boato: ‘Neto era conhecido na comunidade de Cristo Rei como ‘um homem que não respeitava a mulher de ninguém’’. Apesar de se tratar apenas de um suspeito, fotos do enterro e do rosto do agricultor foram publicadas. Além disso, sob o título ‘Suspeito já foi brasiguaio’, o jornal descreve onde Neto morou e trabalhou nos últimos anos.
O texto tem ainda declarações do pai e de um amigo do suspeito, mas a matéria encerra da seguinte maneira: ‘Mesmo com a negativa da família, a polícia continua suspeitando de que Neto poderia ter participação nos ataques. A principal evidência é sua ficha criminal. Além de ter sido preso em 2001, acusado de estupro, ele também teria crimes sexuais no Paraguai’.
É no dia 20 de outubro, porém, que o exemplo de criminalização de um inocente pela imprensa fica claro. A chamada de capa é ‘Exame de DNA inocenta suspeito’, mas a legenda da foto em que aparece o pai do acusado é ‘Levino Ramos acredita na inocência do filho’ e dá ao leitor a impressão de que ainda há motivos para que alguém não acredite nisso. O tom de dúvida vai permanecer nas páginas internas, a começar pela publicação da foto do suspeito, já inocentado, ao lado do retrato falado do maníaco. Sobre o resultado do exame de DNA, o jornal traz que ‘depois que a reportagem de A Notícia tomou conhecimento, ficou evidente a frustração de policiais que trabalhavam no caso diante do resultado negativo, pouco esperado por eles’.
E o leitor?
Neste episódio, duas hipóteses: ou AN também ficou frustrado, ou baseava seu texto somente nas informações dadas por esses policiais. Isso porque o jornal publica ainda: ‘Embora tenha a prova científica, a polícia está intrigada com os fortes indícios que ligavam o agricultor ao temido maníaco sexual (…). Pesavam contra ele os antecedentes criminais por estupro, a suposta semelhança com o retrato falado divulgado, a touca apreendida em sua casa e o comportamento agressivo contra as mulheres’.
Um detalhe: a touca encontrada só havia sido mencionada até então em texto do ANCidade, que circula apenas na região de Joinville. O leitor do resto do Estado ficou sem essa informação.
Ainda no dia 20, a sub-retranca com declarações do pai do acusado mostra bem o que pode ocorrer se as informações não forem publicadas com cautela: ‘Enquanto trabalha ou descansa, sofre com a perda do filho e as acusações de que seria pai de um criminoso’. A fonte insiste na inocência do filho que não pôde se defender das acusações da imprensa. Mesmo inocentado pelo exame de DNA, o agricultor não se livrou de ter seu nome vinculado aos crimes mais uma vez. O assunto voltaria às páginas de AN no dia 2 de novembro. Na pág. A10, pode-se ler que ‘o homem preso pela Polícia Militar, na manhã de ontem, (…) foi reconhecido por pelo menos cinco vítimas’. O nome do novo suspeito não aparece nesta edição. O que num primeiro momento pode parecer cautela do próprio jornal, é explicado no corpo da matéria: ‘O delegado preferiu não divulgar o nome nem permitiu que ele fosse fotografado’. Apesar de não publicar informações sobre esse suspeito, o nome do agricultor inocentado está na última parte do texto: ‘(…) José Ramos Neto, que já tinha sido preso por crimes sexuais, morto em São Francisco, chegou a ser apontado como o possível maníaco. Porém, um teste de DNA mostrou resultado negativo’.
Na edição do dia 3: lê-se que ‘o homem preso pela Polícia Militar (…), suspeito de ser o maníaco da praia, tem 31 anos, é natural de Itajaí e diz trabalhar em obras como pedreiro. Ele não portava documentos e o nome que apresentou à polícia é mantido em sigilo’.
No dia 4, mais um deslize: o nome do suspeito é divulgado – Fábio Alexandre de Oliveira – mesmo com o texto apontando que ‘a polícia (…) procura uma prova concreta contra ele e usa cautela sobre a hipótese de que seja autor de três estupros e três tentativas’. No dia 5, nota publicada na pág. A13 diz que o maníaco teria feito pelo menos 15 vítimas até agora, entre estupros e assaltos, e que ‘o inquérito final sobre a ação do criminoso deverá ser entregue à Justiça em dez dias’.
O assunto volta a ter destaque em A Notícia no dia 6 de novembro, com uma reviravolta no caso. O jornal traz que ‘numa entrevista gravada (…), o pedreiro que afirmou ser até então Fábio Alexandre de Oliveira, 31 anos, disse chamar-se na realidade Júlio César de Jesus, 42, e que é um foragido da Penitenciária de Florianópolis’. Parte da entrevista é publicada na forma de pergunta e resposta, e nela, o suspeito fala de dependência de cocaína, da família e se diz inocente dos crimes. Nos dez dias seguintes, nenhuma linha sobre o caso será publicada no jornal. Como se o caso estivesse solucionado. E o leitor, como fica?
Suposições no Diário Catarinense
Com base em informações oficiais, laudos de perícia técnica e muitas suposições, o Diário Catarinense não ofereceu um diferencial na cobertura dos casos de estupro em Itapoá.
Em 18 de setembro, o jornal publicou a matéria ‘Morto pode ser o estuprador’. Apesar de nada confirmado pela polícia ou por qualquer outra fonte, o DC trouxe na pág. 26 o retrato falado e o nome do homem que ‘teria sido assassinado com tiros no Norte’ e que seria o ‘provável assassino’ de Itapoá.
O jornal publicou ainda a declaração de Rodrigo Gusso, delegado de Itapoá que dizia que era preciso ‘esperar o resultado de DNA dele, que será comparado ao do sêmen e sangue coletado das vítimas’. Mas o jornal não teria se precipitado ao divulgar o nome do suspeito, mesmo morto e ainda sem a devida comprovação?
Na semana seguinte, em 20/09, o DC traz uma matéria, novamente com o retrato falado do suspeito e com seu nome publicado. Na menção, as informações publicadas são as mesmas do texto de dois dias anteriores, com a ressalva de que ‘A Polícia Militar reforçou o policiamento em Itapoá’. O Diário Catarinense pareceu estar em dúvida quanto ao envolvimento do homem assassinado com os estupros de Itapoá ao reforçar a hipótese de que, ‘as suspeitas só serão confirmadas após o exame de DNA’. Apesar disso, o jornal insistiu na publicação do nome do suspeito.
Um mês depois, em 21 de outubro, o DC publica a matéria ‘Estuprador de Itapoá pode estar vivo’ e corrige o nome de João Ramos Neto que até então era conhecido como José Ramos Neto e tratado como suspeito nas páginas do diário. O jornal explica que, ‘inicialmente, o homem morto foi identificado como sendo José Ramos, nome que seria de um irmão de João, morto anteriormente na Bolívia’. Ainda na matéria, o DC trouxe que ‘embora falte ainda o resultado de outro exame, o delegado deve se reunir hoje com peritos para definir estratégias para esclarecer o caso’. Mais uma vez, mesmo sem comprovação, pessoas suspeitas têm o seu nome envolvido em atos criminosos.
Na edição do dia 3 de novembro, o Diário Catarinense vem com a matéria ‘Acusado de estupro é reconhecido’. Segundo o jornal, ‘através da voz, ele teria sido identificado por uma das vítimas recentes’. Um policial não identificado declara ainda que ‘o estado em que a vítima ficou ao ouvir a voz dele foi impressionante’. O texto publicado tinha como principal fonte alguém identificado como ‘um policial’. Mas o leitor pode se perguntar quem seria o tal policial e quem seria a tal ‘testemunha’, também consultada pela reportagem. Se até então o jornal não havia omitido nem ao menos os nomes dos suspeitos, o que teria levado o DC ser tão prudente agora?
Mudou o jornal ou mudou a postura da polícia no caso, depois que um suspeito divulgado foi descartado?
A lei e o código de ética
É evidente que os repórteres que cobrem as ocorrências policiais ficam sujeitos às informações liberadas pelas autoridades da área. Entretanto, o jornalista não pode apenas se basear nessas versões para fazer o relato dos casos. Foi acreditando cegamente num delegado de polícia que a grande imprensa acabou provocando o escandaloso Caso da Escola Base, em abril de 1994.
Dez anos depois, o padrão de cobertura dos veículos de comunicação parece ter mudado muito pouco. Ainda se investe na criminalização de suspeitos. Os anônimos são desrespeitados a todo o momento, e os mais humildes mais ainda. Se os suspeitos tivessem posses, muito possivelmente seus nomes seriam preservados e o caso do ‘Maníaco de Itapoá’ teria outros contornos.
Confiando tão somente na polícia e checando muito pouco, os jornalistas que cobriram o caso cometeram também erros em série. Atentaram contra o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros no artigo 14 que orienta o profissional a ‘ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas’. E desrespeitaram a própria Lei de Imprensa (lei nº 5250/67) no artigo 24, que aponta que são puníveis ‘a calúnia, difamação e injúria contra a memória dos mortos’.
Ainda não solucionado, o esclarecimento do caso de Itapoá dependerá não só dos esforços da polícia na investigação mas da melhoria na cobertura por parte dos jornalistas.
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Jornalista, professor do curso de Jornalismo da Univali (SC)